Às vésperas de encerrar uma edição que acolheu um amálgama de Brasil com a Romênia (a alegoria política "Drácula", de Radu Jude), em sua competição oficial, o Festival de Locarno viveu uma arenosa epifania em sua 78ª edição, levado para as dunas da Namíbia pela diretora finlandesa Anna Eriksson. Seu novo filme, "E", embrenha-se por um deserto onde simbolismos dos mais indecifráveis, ligados a psique, apontam verdades sobre a condição humana oprimida por vetores patriarcais. A produção chapou o evento suíço, fora da disputa oficial pelo troféu Leopardo de Ouro, esbanjando sinestesia.
O longa-metragem é parte de uma trilogia que Anna, também cantora e artista visual, inaugurou inspirada na saga real de três mulheres declaradas com histeria no século XIX — Blanche Wittmann, Augustine Gleizes e Geneviève Bazile Legrand — depois de serem internadas no hospital da Salpêtrière, em Paris, cuidadas pelo neurologista Jean-Martin Charcot. Ele as categorizou por letras: W, B, G. A filmografia da realizadora segue esse parâmetro em seus dois títulos pregressos: "M" (2018) e "W" (2022).
"Os traços de histeria nelas são indicadores de que são vítimas da sociedade", disse Anna ao Correio da Manhã, via Zoom, explicando que as filmagens de "E" duraram cem dias, divididos em uma etapa de três meses em 2023 e mais uma estadia em 2024. "Filmávamos sempre no cair do sol, o que nos assegurava apenas uns 45 minutos, por dia, da luz avermelhada que eu buscava. Esse processo me ensinou a ser mais paciente e mostrou que preciso planejar mais".
Existe uma camada de som em "E" que nos conta uma narrativa de ecos políticos. Neal, a ex-primeira-ministra Eva Vogler causa um escândalo no banquete do prêmio Nobel e logo se vê perdida numa paisagem desértica. Lá, é confrontada por sua doppelgänger (um duplo, um ser de igual aparência, mas de distinto caráter), que busca destruí-la. Isso é o que se ouve. O que se vê é a luta de uma mulher contra as areias, numa atuação que mais parece um balé.
"Entrei naquele espaço vinda de uma Europa que saía da covid-19 e encontrei um lugar que, para onde quer que se olhasse, não se via nada. Há apenas sombras, parecidas com fantasmas, na superfície do que olhamos. Nesse ambiente, uma pessoa se esquece fácil do que perdeu e do que é. É libertação e é recomeço. O deserto tem uma natureza divina", explica Anna, que usou referências do mítico cineasta Ingmar Bergman (1918-2007) na dramaturgia.
O sobrenome de sua protagonista, Vogler, é o mesmo da atriz em crise interpretado por Liv Ullmann em "Persona" (1966), um dos marcos do legado bergmaniano.
"A conexão consciente com Bergman vem na reflexão sobre algo perdido, numa personagem que não fala ao longo de todo o meu filme", diz Anna. "Em 'E', reflito o espírito de nosso tempo em que o sentido de muita coisa sumiu, deixando-nos melancólicos".
Neste sábado, o júri da seleção de longas de Locarno, presidido pelo cineasta cambojano Rithy Pahn anuncia o resultado da premiação. Um dos títulos que mais se destacaram no certame foi o português "As Estações", de Maureen Fazendeiro. A realizadora de "Motu Maeva" (2014) e "Sol Negro" (2019) vai além das fronteiras etnográficas ao desbravar o campo, entre cabras, silêncios e sonhos. Entrelaçando relatos de trabalhadores rurais, pesquisas de campo de arqueólogos, desenhos, investigações científicas, lendas, poemas e canções, seu filme é uma viagem pela História de uma nação que um dia teve o mundo nas mãos, no tempo das grandes navegações. Não é o mar... testemunha do passado de glórias das caravelas e da Escola de Sagres... que interessa ao olhar de Maureen e, sim, os contos de uma região do sul de Portugal, o Alentejo. Seu longa, que entra nas telonas de Locarno nesta segunda, é um retrato das pessoas que lá viveram, qual uma autópsia em corpo vivo de um país. O jogo pode virar com a exibição da nova expressão autoral da badalada diretora Naomi Kawase ("Esplendor"), vinda de Nara, no Japão: "Yakushima's Illusion", com a luxemburguesa Vicky Krieps.
É o último dos 18 competidores a ser projetado no festival. Na trama, Corry, uma coordenadora francesa de transplantes cardíacos pediátricos, é enviada ao Japão, onde a doação de órgãos continua sendo um tabu. Enquanto luta para salvar um menino, seu parceiro Jin, um fotógrafo de Yakushima, desaparece repentinamente. Ele se torna um "Johatsu", como os japoneses chamam as 80 mil pessoas que desaparecem da noite para o dia a cada ano. Corry enfrenta uma dupla provação: salvar uma criança enquanto lida com a perda do homem que ama.
Após a entrega de prêmios, Locarno encerra suas atividades com a premiação e com exibição da nova versão (agora musical) de "O Beijo da Mulher Aranha", o livro de Manuel Puig (1932-1990), que inspirou um dos maiores êxitos do diretor Hector Babenco (1946-2016), em 1985. Agora, Jennifer Lopez encarna o papel que foi de Sonia Braga. O longa, dirigido por Bill Condon, passa no encerramento do festival, e tem Diego Luna e Tonatiuh nos papéis que foram de Raúl Julia (1940-1994) e William Hurt (1950-2022), que ganhou o Oscar pela versão de Babenco, interpretando o decorador Molina.