Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

O Deus-Sol há de brilhar mais uma vez em Gramado

Batizado em tributo ao Deus-Sol dos Pampas, o Kikito premia os melhores do cinema breasileiro anulamente em Gramado (RS) | Foto: Diego Vara/Divulgação

Primeiro longa-metragem a vencer um Festival de Gramado, na edição inaugural do evento, em 1973, "Toda Nudez Será Castigada" foi laureado ainda com o Urso de Prata da Berlinale e levou 1.737.151 pagantes às salas de exibição. É um rol de vitórias que voltam a ganhar holofotes em meio à nova versão de sua trama, que Daniel Filho acaba de rodar no Rio, com Hermilla Guedes e Otávio Müller. Falou nesse clássico dirigido por Arnaldo Jabor (1940-2022), a partir do texto teatral homônimo de Nelson Rodrigues (1912-1980), falou-se no Kikito. É esse o nome da entidade mítica de povos gaúchos da América Latina - o sorridente deus-sol dos Pampas - que emprestou suas feições ao troféu gramadense nos anos 1970. Desde então não cantou pra subir, sem arredar pé da Serra Gaúcha e do imaginário cinematográfico deste país, que viu, ao longo dos últimos 52 anos, Gramado renovar sua relevância, mantendo-se num trono: o de mais popular mostra competitiva do audiovisual neste país. 

 

Tapete vermelho, chocolate dos bons... e frio!

O Último Azul | Foto: Guillermo Garza/Divulgação

Ok, tem o Festival de Brasília, seu irmão mais velho, que abre suas atividades este ano com "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho, no dia 12 de setembro. Tem(os) ainda o Cine PE, o Cine Ceará, a Première Brasil do Festival do Rio, o Fest Aruanda, o Olhar de Curitiba e a seção Aurora da Mostra de Tiradentes. Todos têm importância estratégica, cada qual a seu modo, só que quando se menciona Gramado, lá no coração do Rio Grande do Sul, o Brasil todo - até os rincões sem salas de projeção - tem uma ideia do que se fala. Fala-se de tapete vermelho, sim; fala-se de chocolate bom, também; fala-se de frio, daqueles de bater o queixo; mas, conversa-se, sobretudo, de resiliência artística, o que volta a ser pauta nesta sexta, com o início de uma 53ª edição recheada de vozes autorais em suas múltiplas latitudes.

Já de cara tem "O Último Azul", de Gabriel Mascaro, na abertura, hors-concours. Respeitado por "Boi Neon" (2015) e "Divino Amor" (2019), o diretor pernambucano ganhou o Grande Prêmio do Júri da Berlinale com essa belíssima distopia contra o etarismo, apoiado no talento de Denise Weinberg e Rodrigo Santoro. Em atuação estonteante, Denise vive a septuagenária Tereza, funcionária de um curtume de jacarés, na Amazônia, que se vê forçada a viver numa espécie de campo de concentração para cabeças grisalhas. A recusa de ser isolada num retiro obrigatório a impulsiona por uma jornada rio acima. A produção ganhou ainda a láurea do Júri Ecumênico de Berlim e o Prêmio dos Leitores do Berliner Morgenpost.

"O Gabriel me catou. Eu tinha filmado 'Greta' no Ceará e ele viu. Por vários caminhos, chegou a mim e me fez andar pelos rios, na Amazônia", disse Denise ao Correio da Manhã, em terras alemãs. "É muito impressionante ver a natureza gritando lindamente com a gente. É uma pretensão a gente se achar grande perto daquilo tudo".

Tereza (papel de Denise) conta com a ajuda de barqueiro de coração quebrado para cruzar a geografia fluvial amazonense, ouvindo dele segredos sobre o caracol da baba azul, um visco que abre portas da percepção. Esse homem das águas é um devir Oxum de Rodrigo Santoro, que vai receber o Kikito de Cristal pelo conjunto de sua carreira.

Essa honraria passou a ser entregue em 2007, quando foi confiada ao documentarista carioca Eduardo Coutinho (1933-2014), e já foi entregue a gigantes de outras pátrias. Os argentinos Cecilia Roth e Juan José Campanella, a germânica Mariëtte Rissenbeek, o uruguaio Cesar Troncoso e o moçambicano Ruy Guerra receberam esse solzinho cristalizado, além do titã baiano Othon Bastos, coroado com esse mimo em 2013. Tem outros troféus honorários por lá, como o Eduardo Abelin, que será confiado à produtora Mariza Leão, no dia 18, em reverência a seus feitos pelo cinemão e suas lutas políticas. No dia 19, a atriz paraibana Marcélia Cartaxo será contemplada com o troféu Oscarito, pelo esplendor de seu jeito de atuar. As homenagens a essa turma aquecem uma cidade assolada por baixas temperaturas nas ruas, mas inflamada por discussões no Palácio dos Festivais, sede de suas sessões. É lá que se concentra a competição nacional de longa de ficção.

Concorrem a partir deste sábado: "Papagaios", de Douglas Soares (Rio de Janeiro); "A Natureza das Coisas Invisíveis", de Rafaela Camelo (Distrito Federal); "Nó", de Laís Melo (Paraná; "Querido Mundo", de Miguel Falabella (Rio de Janeiro); "Cinco Tipos de Medo", de Bruno Bini (Mato Grosso); e "Sonhar com Leões", de Paolo Marinou-Blanco (São Paulo). Existe uma competição de longas documentais também, que corre em sinergia com o Canal Brasil (emissora da TV a cabo). Fazem parte desse certame "Lendo o Mundo", de Catherine Murphy e Iris de Oliveira; "Para Vigo me Voy", de Lírio Ferreira e Karen Harley, sobre vida e obra de Carlos Diegues (1940-2025), já exibido em Cannes; "Avós", de Ana Lígia Pimentel; e "Até Aonde a Vista Alcança", de Alice Vilella e Hidalgo Romero. Caio Blat, Camila Morgado e Marcos Santuário são os responsáveis pela curadoria. A maratona serrana contará com atividades extras, entre elas, a exibição de duas séries: "Máquinas de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente" e "Comer, Beber e Aprender".

Macaque in the trees
'Rua do Pescador Nº 6', de Bárbara Paz, desponta como favorito em premiação específica para produções do Rio Grande do Sul | Foto: Divulgação

Tem uma competição gaúcha, que traz uma pérola em concurso: "Rua do Pescador n°6", de Bárbara Paz. Tem ainda uma seleção de curtas-metragens nacionais em busca de Kikitos. As pílulas de invenção deste são: "Aconteceu À Luz Da Lua" (RS), de Crystom Afronário; "Boiuna" (PA), de Adriana de Faria; "Cabeça de Boi" (SP), de Lucas Zacarias; "FrutaFizz" (SP), de Kauan Okuma Bueno; "Jacaré" (BA), de Victor Quintanilha; "Jeguatá Xirê" (RS), de Ana Moura e Marcelo Freire; "O Mapa Em Que Estão Meus Pés" (AL), de Luciano Pedro Jr; "Na Volta Eu Te Encontro" (BA), de Urânia Munzanzu; "As Musas" (PE), de Rosa Fernan; "Quando Eu For Grande" (PR), de Mano Cappu; "Réquiem Para Moïse" (RJ), de Caio Barretto Briso e Susanna Lira; e "Samba Infinito" (RJ), de Leonardo Martinelli. No dia 23, a premiação será anunciada.