Quem não é não se esconde... cantava o funk "O Bonde do Rinoceronte... ao evocar a figura de Buffalo Bill, ou melhor William Frederick Cody (1846-1917). Caçador, batedor de carteiras e condutor ferroviário, ele virou lenda no Oeste... e no imaginário de Hollywood... a partir de um espetáculo itinerante de cavalaria e de tiro, chamado Wild West Show, que comandou a partir de 1883. Essa história foi contada pelo diretor Robert Altman (1925-2006), com Paul Newman (1925-2008), em "Oeste Selvagem", ganhador do Urso de Ouro na Berlinale de 1976. O que ficou de fora daquela narrativa perfumada a pólvora aparece agora no spaghetti meio à italiana, meio à americana "Heads or Tails?" ("Testa o Croce"?), de Alessio Rigo de Righi e Matteo Zoppis, produção responsável por livrar o Festival de Locarno do risco da inércia.
É raríssimo ver um bangue-bangue no cinema hoje em dia, quando só o streaming ainda dá bola para o filão, que é alvo do patrulhamento da correção política. Cannes, em 2023, deu espaço para "Strange Way of Life", de Pedro Almodóvar, que revisitava o western sob a lente queer. Já "Heads or Tails?" opta por uma linguagem moderna, com ecos do cinemão dos EUA e de longas B de Sergio Leone na Itália dos anos 1960. A trama se passa no início do século XX, quando o Buffalo Bill's Wild West Show chega à Itália para deslumbrar o povo europeu com o gatilho relâmpago de Cody, vivido por John C. Reilly. Após um rodeio mortal e um beijo roubado, Rosa e seu amante caubói Santino (Nadia Tereszkiewicz e Alessandro Borghi) fogem pela selva italiana, perseguidos por Bill. A história que surge ali não entrou nas HQs do Tex, nem nos bolsilivros "Estefânia" (uns livrinhos de papel jornal com tramas de faroeste), tampouco em "No Tempo das Diligências" (1939), de John Ford.
"O filme foi inspirado em uma lendária competição de dominação de cavalos entre italianos e caubóis americanos. É um anti-western que começa com tropos clássicos e se transforma em um conto mágico onde mito, ficção e realidade se entrelaçam", explicaram os diretores Alessio Rigo de Righi e Matteo Zoppis em nota à imprensa.
Poucos festivais do planeta saberiam acolher um faroeste como Locarno sabe. Desde 2021, quando começou a gestão do atual diretor artístico de Locarno (o crítico Giona A. Nazzaro, de Zurique), a maratona cinéfila suíça vem se abrindo a filmes de gênero, com direito até a uma ficção científica ("Espíritu Sagrado", da Espanha) na competição oficial. Não por acaso, um dos títulos mais esperados do festival para esta semana é o thriller "Keep Quiet", dirigido por Vincent Grashaw, que busca holofotes para o esquecido Lou Diamond Phillips, astro de "La Bamba" (1987). Na trama, um policial indígena experiente e uma recruta precisam encontrar um fugitivo da Justiça, crudelíssimo, cujo retorno à reserva rural expôs seus segredos mais sombrios e pode desencadear uma violenta guerra entre gangues. Sua projeção será na quinta.
Na competição oficial pelo Leopardo de Ouro, sacudida pelo romeno Radu Jude e a comédia mefistofélica "Drácula" (produzida pelo brasileiro Rodrigo Teixeira), Locarno já provou do ensaio antropológico (com "As Estações", de Maureen Fazendeiro, sobre a vida no Alentejo) e do painel geracional ("Le Bambine", das irmãs Valentina e Nicole Bertani, sobre Itália de 1997).
Na terça, a disputa por troféus acolheu o trabalho mais recente de um dos mais potentes metafísicos do cinema mundial: Alexandre Koberidze, da Geórgia. No enredo de "Dry Leaf", ele narra a busca por uma fotógrafa que desapareceu. A última informação que se tem da moça é que ela estava fotografando estádios de futebol rurais em aldeias georgianas. Seu pai, Irakli, parte em busca da garota, viajando de um lugar para outro.
O concorrente desta quarta é da própria Suíça: "Le Lac", de Fabrice Aragno, que produziu filmes de Jean-Luc Godard (1930-2022). Nessa aventura existencialista, um casal se lança numa regata que dura vários dias e noites em um grande lago.
No sábado, o festival se encerra com a premiação e com exibição da nova versão (agora musical) de "O Beijo da Mulher Aranha", o livro de Manuel Puig (1932-1990), que inspirou um dos maiores êxitos do diretor Hector Babenco (1946-2016), em 1985. Agora, Jennifer Lopez encarna o papel que foi de Sonia Braga. O longa, dirigido por Bill Condon, passa no encerramento do festival, e tem Diego Luna e Tonatiuh nos papéis que foram de Raúl Julia (1940-1994) e William Hurt (1950-2022), que ganhou o Oscar pela versão de Babenco.