Quando lutava para tirar "Quase Memória" da literatura, a fim de transformar o "Amarcord" de Carlos Heitor Cony (1926-2018) num filme que só concretizou em 2015, Ruy Guerra falou à imprensa sobre um projeto chamado "O Tempo à Faca". Lá se vão uns 15 anos desde a primeira menção a esse título. Seria um retorno dele às mitologias do Nordeste, seis décadas depois de "Os Fuzis" e 55 anos depois de "O Deuses e Os Mortos".
Passou-se uma década, outros longas-metragens (como "Aos Pedaços" e "A Fúria") saíram de sua iluminada cachola, mas nada de o diretor rodar aquele seu ensejo de nordestern envolvendo a posse de um vestido de noiva. Coube a um dos parceiros criativos mais prolíficos do artesão autoral moçambicano, o carioca Diogo Oliveira, a tarefa de amolar aquela lâmina trágica e levar às telas o argumento em que Ruy repensa o conceito de honra sob códigos de brasilidade.
"O Ruy fala de vingança, mas, no fundo, será um filme sobre amor... um amor nas trevas, num clima de western reatualizado, como um faroeste dos anos 1960 ou 70, mas com questões existencialistas", disse Diogo, ao Correio da Manhã, num intervalo das rodagens, já em curso, viabilizadas em locações na Bahia e em Pernambuco sob o empenho da Têm Dendê Produções.
Ex-aluno de Ruy e professor, Diogo dirigiu com o também cineasta Bruno Laett a biografia do cineasta, o documentário "O Homem Que Matou John Wayne", de 2015. "Temos 20 anos de amizade. O Ruy me abriu as portas do cinema", diz Diogo, que divide o crédito do roteiro com o realizador de "Os Cafajestes" (1962), com colaboração de Laett. "Nós fizemos 'O Tempo à Faca' juntos, na vontade de realizarmos algo em parceria. Ele me disse: 'Vai lá e põe a tua cara no projeto'. É o que faço".
Imbuído de signos míticos, Com cheiro de cult, "O Tempo à Faca" conta a história de dois personagens em conflito com seus códigos de conduta e com seus desejos, em meio ao calor e crueza do sertão criado por Ruy. Neta, vivida por Agatha Moreira, corta as estradas perseguindo o destino de uma vingança, enquanto é tomada pela vontade de se desviar desse caminho ao lado de Solange, interpretada por Uiliana Lima. Já o velho jagunço Deodato Cruz (interpretado por Júlio Adrião), retorna ao povoado onde nasceu, após anos de ausência, para cumprir a promessa feita à esposa no leito de morte: levar um vestido de noiva (aquele de que falamos acima) para o casamento da filha Núbia (Nina Andrade). Sentenciado de morte por Elomar Santos (Carlos Betão), homem que tomou suas terras, ele realiza sua travessia acompanhado de perto pelo jagunço Floro Xavier (papel de Vertin Moura), que não deseja cumprir a sentença de morte.
"Tem diretores que eu admiro muito, além do Ruy, e que transcenderam a fronteira da estética realista, a quem eu sigo como se fossem faróis: Leos Carax, David Lynch e Michel Gondry. São referências importantes para a construção da minha voz aqui, nesse ambiente natural, de luz hipnotizante", explica Diogo. "O que eu espero desse filme, e de tudo o que faço, é que as perguntas sem respostas que temos na vida sejam colocadas em evidência. É preciso sempre indagar sobre nossa existência."
Iniciadas em julho, as filmagens de "O Tempo à Faca" se concentram em Juazeiro, Petrolina e Curaçá, e seguem até 18 de agosto. A direção de fotografia é de Cláudio Antônio e a direção de arte, de Erick Saboya. A produção executiva é de Vânia Lima e a direção de produção, de Bruno Ramos. A Têm Dendê trabalhou com Ruy antes, numa covalência de talentos. Em 2014, ele dirigiu o curta "Dia de Cão", junto à produtora baiana, e, a seguir, em 2017, a série "Gravador de Histórias".
"Ruy é um farol vulcânico" afirma Diogo. "Dirigir um filme de uma história original dele, que escrevemos juntos, é muito emocionante. É um sonho lúcido. É um vôo sem paraquedas."