Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Estação Bruno Safadi: dois cults do diretor carioca ganham as telonas do EStação NET

Nizo Neto tem atuação arrebatadora em 'O Prefeito', filmado nas ruínas da Perimetral e lançado há uma década em Locarno | Foto: Divulgação

Preparando sua volta ao circuito com "Perrengue Fashion", que promete ser um recordista de bilheteria neste ano, Ingrid Guimarães será vista na telona do Estação NET Rio neste sábado de uma forma bem diferente de sua persona cômica habitual, numa sessão de uma joia que teve pouco reconhecimento em sua estreia: "Sofá". O Chay Suede que contracena com ela está também fora dos módulos que a TV Globo costuma oferecer a ele. É um coprotagonismo que se pauta pela investigação, pela experimentação.

Não por acaso, o longa-metragem (a ser exibido no complexo da Voluntários da Pátria n° 35, às 21h) ganhou a vitrine nobre do Festival de Turim, na Itália, às vésperas de a pandemia começar, ali em 2019. A Europa sacou o quanto a direção de Bruno Safadi é capaz de atomizar arquétipos impostos pela TV e escavar a alma de seus personagens. A projeção no Rio, neste fim de semana, na mostra Cavideo 28 Anos, conta com outro acerto de Safadi, "O Prefeito", que completa 10 anos.

A interpretação de Nizo Neto é motivo para te tirar de casa e ir lá conhecer a obra de um diretor pautado pela inquietude. Se alguém, em algum futuro possível, tivesse que explicar o que foi o Rio de Janeiro do fim da década de 2010 a qualquer um que nunca tenha pisado aqui, bastaria exibir os dois longas de Safadi. Ali estão nossas desatenções, nossos desamparos, nossas alegorias e as esperanças cinéfilas que o circuito Estação ajudou a talhar ao longo de sua história.

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A arte da espera une os degredados vividos por Ingrid Guimarães e Chay Suede em 'O Sofá', que o Estação exibe neste sábado | Foto: Divulgação

"Sofá" é uma espécie de instalação audiovisual de colagem, chanchada, teatro besteirol e filme de Ernest Lubitsch (1892-1947), que traduz o eclipse moral desta nossa metrópole na Era Marcelo Crivella. Suave em seu diálogo com a tragicomédia, o filme poderia ser sintetizado por uma fala: "Quando a opressão aumenta, muitos se desencorajam". Há muitos motivos para se perder a coragem no mundo em que o único heroísmo possível vem de um pirata, Pharaó (Chay Suede), e de uma professora, Joana D'Arc (Ingrid, em estado de graça). A educadora anda sempre acompanhada de uma "barrigudinha", apelido para as garrafas de cachaça mais "mata-rato" do mercado, aquele marafo engasga-gato, que se compra com cinco merréis. Amazona da triste figura, Joana D'Arc deu ao cinema brasileiro uma das sequências mais catárticas da década passada, apoiada na entrega radical de sua intérprete. A tal sequência: em meio a um cortejo a ser coroado com um beijo, Joana desenha, de canetinha Pilot, as letras do alfabeto na pele suada de Pharaó. No enquadramento de bafos quentes da fotografia de Azul Serra, não há enlace mais sensual: D'Arc é uma educadora sem lousa, que faz da alfabetização seu instrumento de gozo. Já nas primeiras cenas, editadas pelo montador Ricardo Pretti sob a álgebra da liberdade, Joana caminha numa linha reversa, num rewind característico do que se fazia no videocassete, num rebobinar de passos que serve de metáfora ao atraso do RJ nos anos Crivella. É o esbarrão em Pharaó que há de vetorizar o caminhar dessa mártir de uma cidade partida.

O amor que se desenha ali bate cabeça para Lubitsch, um dos deuses de Safadi), ao evocar "O Diabo Disse Não" (1943). A interseção entre os corações lubitschianos de "Sofá" é explicada em um desabafo do personagem de Chay: "Saudade não encontra distância".

Em "O Prefeito" também existe amor... ainda que metafísico... no encantamento de um político por uma entidade com ares de ninfa (papel de Djin Sganzerla), em transes movidos a crack. A atmosfera é de poeira e de escombros, nas entranhas desovadas da Perimetral. É ali que o alcaide do título (uma espécie de Justo Veríssimo interpretado por um Nizo Neto luminoso) se propõe a fazer do Rio de Janeiro uma pátria autônoma.

Exibido nos festivais de Locarno e de Munique, além do Cine PE, "O Prefeito" acompanha o empenho de um "regente" da Prefeitura carioca que opta por governar a Cidade Maravilhosa do que sobrou de uma via de acesso demolida. A Perimetral se torna seu castelo. Em meio a seus delírios de grandeza e ao transtorno obsessivo compulsivo que tem com limpeza, ele recebe uma visita de um ente espectral (Djin) para abrir as portas de sua percepção com entorpecentes. Seu sonho é se tornar um novo Pereira Passos (1836-1913), o governante responsável pela revitalização urbanística do Rio entre 1902 e 1906. A forma que a figura esculpida por Nizo Neto encontra para "reinar" é emancipar o Rio como nação soberana, mantendo os impostos locais - altíssimos - dentro do perímetro da cidade. A ideia, a princípio megalômana, concretiza-se graças ao apoio de aliados de governo. Aos poucos, contudo, o que seria um golpe escuso torna-se um governo revolucionário.

Nesta sexta-feira, a mostra Cavideo exibe curtas de Walter Lima Jr. e de Hsu Chien Hsin. No domingo rola homenagem a Vladimir Carvalho, um papa do documentário nacional que partiu em 2024, com a projeção de "Quando a Coisa Vira Outra".