Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Titane' (oni)presente nas telas

Agathe Rousselle protagoniza 'Titane', uma das Palmas de Ouro mais controversas | Foto: Mubi

Vísceras hão de espirrar pelo Estação NET neste sábado com a ousadia do Mubi Fest Rio de Janeiro de integrar à edição inaugural de sua maratona autoral a Palma de Ouro que mais incendiou Cannes de controvérsia: "Titane". O longa-metragem que deixou a Croisette, em 2021, com um dos troféus mais disputados da indústria do audiovisual passa em tela grande neste 2 de agosto às 19h10, seguido pelo trabalho mais recente de sua realizadora, a francesa Julia Ducournau: a mistura de melodrama e body horror "Alpha", a ser projetado às 21h30. Essa dobradinha do sabadão é o filé da mostra que reúne parte valorosa do acervo do streaming www.mubi.com, com pré-estreias de seus futuros lançamentos.

Com ele, Ducournau rachou sensos na Croisette, uma vez mais. A única unanimidade em relação ao que se viu em "Alpha", em seu jorro imagético devastador, é o desempenho da jovem atriz Mélissa Boros. Ela interpreta uma adolescente de 13 anos que passa por uma fase de clamor do sexo, na descoberta do desejo sexual, sob a recorrente tentação de um colega de escola, num momento em que uma doença transmitida pelo sangue destrói multidões pelas ruas, sobretudo dependentes químicos. A peste se chama Vento Vermelho. É difícil não pensar na Aids ao ver como o contágio se deflagra, por meio de agulhas infectadas. Golshifteh Farahani e Tahar Rahim interpretam um casal de irmãos. A médica vivida por Golshifteh, chamada só de Maman, precisa ajudar o mano Amin (Rahim, em impecável atuação), que está com os sintomas do tal Vento Vermelho.

Macaque in the trees
'Alpha' é uma metáfora da realizadora Julie Ducournau sobre o boom da 'Aids | Foto: Mubi

Laureado em Cannes com o Grand Prix Technique (dado à sua fotografia e a seu design de som), "Alpha" ampliou o prestígio de Julia como diretora autora. Revelada com o périplo de uma estudante de Veterinária acometida por uma vontade incontinente de comer carne de gente, narrado em "Grave" ("Raw", 2016), Ducournau é parisiense, tem 41 anos e enxerga o corpo como sendo um lugar de revelações e de transcendência, a julgar pelo processo revolucionário que suas protagonistas passam a partir de um gatilho de seus organismos.

A jovem vegana que vira canibal em "Grave" passa a atacar pessoas por culpa de uma fome incontornável. Já em seu filme avassalador, "Titane", uma mulher na casa dos 20 e tantos anos engravida após uma relação sexual sem preservativo. Seria difícil encontrar camisinhas que dessem conta de seu parceiro: um... carro. Por cerca de nove meses, após uma transa em que latarias metálicas de agitam, Alexia (Agathe Rousselle, em lívida atuação) vai expelir um líquido que parece óleo diesel de sua vagina. Por vezes, a secreção é graxa. São imagens que, faladas, soam caricatas, mas que, filmadas com a elegância e a visceralidade de Julia, rendem ao cinema uma experiência inesquecível.

Lançado aqui no Festival do Rio de 2021, "Titane" investe nessa exortação da potência corporal, típica de Julia, mostrando a carcaça humana como um templo de afirmação do livre arbítrio, num estudo sobre identidades performáticas. Cannes premiou-a, mas dividiu-se num Fla x Flu tipo "Amei" x "Odiei" ao fim de sua projeção. O Festival de San Sebastián viveu igual situação, há quatro anos. Houve gente saindo das sessões quando Alexia bate o próprio rosto contra uma pia, a fim de deformar seu nariz. Deformar-se é parte da reinvenção pela qual a personagem há de passar quando se assume, sem culpa, como serial killer, dando um ponto final à existência de homens que passam dos limites na aproximação a ela e dando um adeus a mulheres que não reagem a seus carinhos furiosos como ela espera. E ela mata usando um pau de cabelo como arma. Mas é a segunda transformação por que a moça passa. A primeira acontece em sua infância, quando um acidente rodoviário impõe a instalação de uma placa de titânio em sua cabeça. Ali ela vira ciborgue. Essa metamorfose clínica expõe a condição maquínica da civilização, nestes tempos em que somos, a cada dia mais, centauros de nossa tecnologia.

Em "Titane", Alexia, que também ostenta uma ferida cicatrizada na pele, só tem orgasmos com veículos de quatro rodas, levando consigo o fruto desse prazer. Fruto esse que vai se desenvolver numa assustadora aproximação da narrativa com os códigos do horror. O que dilui o tom sombrio - mas não o clima de bizarrice - é a relação que Alexia estabelece com um bombeiro Vincent (vivido por Vincent Lindon, em excepcional atuação) que enxerga nela a filha que perdeu. É o germe de um amor paterno que vai descambar para algo sem nome, surpreendente como cada fotograma desta aula de biologia existencialista.