Na reta final de uma maratona pautada por uma mistura de geografia, memória e poesia, a mostra "Filmes Cubanos Restaurados", organizada na Caixa Cultural, sob a curadoria de Silvia Oroz e Gregory Baltz, separou espaço nobre em sua grade deste fim de semana para imergir no legado uma realizadora que redefiniu as bases para a representação feminina no audiovisual de Havana e seu arredores: Sara Gómez (1943-1974). Na sexta, às 16h30, haverá um pacotão de curtas-metragens dela na luxuosa telona do Centro do Rio. "Irei a Santiago" ("Ire a Santiago", 1964), com 16 minutos, é o primeiro de uma programação que combina informação política e inquietude existencial em igual medida. "Fábrica de Tabaco" ("Excursion a Vueltabajo", 1965) é outra iguaria dessa seleção.
Além de ser um ícone dos debates feministas no audiovisual, Sara Gómez é vista como um pilar da peleja antirracista na América Latina. "De Certa Maneira" ("De Cierta Manera"), lançado postumamente em 1977, é hoje definido como um olhar seminal para debates afinados com as marchas decoloniais numa perspectiva histórica. Tem sessão dele na Caixa Cultural no sábado, às 18h10. Antes, às 17h, rolam mais 50 minutos de curtas da diretora, com "Atenção Pré-natal" ("Atención Prenatal", 1972); "E Temos Sabor ("Y Tenemos Sabor", 1967); e "Guanabacoa, a Crônica da Minha Família" ("Guanabacoa, Cronica de Mi Familia", 1966).
"De Certa Maneira" se passa na região de Miraflores, onde o crescente romance entre um operário de fábrica e uma professora esbarra nas radicais diferenças que ambos têm sobre a vida revolucionária. Esse e cinco outros filmes da obra curta (porém contundente) de Sara - interrompida por sua morte, aos 31 anos, ocasionada por uma crise de asma - serão exibidos na maratona cinéfila carioca, numa seleção que revivifica as estéticas de Cuba.
Antes da obrigatória retrospectiva de Oroz e Baltz na Caixa Cultural, Sara ganhou os holofotes do Festival de San Sebastián, na Espanha, em 2024, numa seção voltada para a euforia de Cuba nas telonas, entre as décadas de 1960 e 70. Foi uma das primeiras vezes em que seu cinema (autoralíssimo) esteve sob as luzes da ribalta na Europa.
Egressa de Guanabacoa, onde cresceu sob a guarda de avós paternos e de tios, em uma família ligada à Filarmônica de Havana, Sara foi uma das bases de renovação dos meios de representar a debacle do machismo no ICAIC, o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos. Seus filmes misturavam registro etnográfico e investigações sobre angústias sentimentais. Na condição de "cineasta revolucionária", a realizadora de "Isla Del Tesoro" (1969) e "Poder Local, Poder Popular" (1970) - que serão exibidos na sexta, às 16h30, pela Caixa Cultural - estava preocupada em representar a comunidade afro-cubana, os dilemas enfrentados pelas mulheres de sua pátria e o cotidiano dos setores marginalizados da sociedade. Os ranços do colonialismo (e os traumas dele advindos) são os alvos de cineasta.
"Nos documentários de Sara, mostra-se a contribuição da revolução para diminuição das diferenças entre brancos e negros. Porém, ainda assim, a discriminação racial se apresenta como um processo que tem sido longo e lento", destaca o pesquisador Pedro Javier Gómez Jaime, em um trabalho acadêmico sobre Sara. "A cineasta marca em Cuba não apenas um ícone por ser a primeira mulher cubana que se dedicou à realização cinematográfica, mas pelo imaginário que carregam as suas filmagens, procurando um mundo democrático trasladando ao cine seu próprio contexto. Seu trabalho possibilita ainda hoje um diálogo entre aspectos de índole ética, tanto quanto outros de índole estética ou política, e logra isto sem se distanciar dos problemas do seu cotidiano".
Em 1961, o .doc "Plaza Vieja", integrante do projeto "Enciclopedia Popular # 28", inaugura a carreira da realizadora, que se destaca ainda com "Una Isla para Miguel" (1968). Seu derradeiro documentário saiu em 1972: "Sobre Horas Extras y Trabajo Voluntario".
A mostra cubana na Caixa Cultural termina neste domingo (3).