Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA / FILME / FILHOS: Atrás das grades do perdão

A agente carcerária Eva (Sidse Babett Knudsen) encara seu fantasma vivo em 'Filhos' | Foto: Nikolaj Moeller/Divulgação

Louvada Netflix afora por seu desempenho feroz como Birgitte Nyborg na série "Borgen", Sidse Babett Knudsen mede 1,68m de altura. A medida é essencial para a construção da personagem que interpreta em "Filhos" ("Vogter"): a agente carcerária Eva. Na ala onde opera, dando aula de ioga aos presos de periculosidade ínfima de que cuida, a retidão dessa servidora pública da Lei faz dela uma gigante, ao molde do coração acolhedor que tem. No entanto, no setor para o qual decide se transferir, que corresponde à zona reservada a criminosos padrão "bicho solto" da Escandinávia, ela é encarada como se fosse um pinguinho de gente, inapta a lidar com a matilha de lobos ali detidos.

Essa impressão é sintoma de machismo. Não parte só da estatura da carcereira, mas também de seu falar manso. No olhar de seus novos colegas, mesmo os que já sofreram xenofobia, aquela figura é um pombo entre carcarás. Acontece que Eva rosna. Alto. Ela escarra na comida alheia. Ela senta o cassetete ao menor sinal de balbúrdia. Ela se adequa a um meio que a exclui pelo genótipo... e por sexismo. O problema é o que a faz estar ali.

Parece que a gente entende o mote assim que o Maciste chamado Mikkel, besta incontrolável vivida por Sebastian Bull, entra em cena. O título do longa-metragem, "Filhos" ("Sons" no exterior) trai a nossa percepção... ou quase. É, sim, uma narrativa dramática vetorizada por maternidade, mas é, também, um estudo sobre a Europa dos anos 2020, usando o microcosmo de uma cadeia como metonímia... e como metáfora. Tem um continente inteiro ali.

Lançado na disputa pelo Urso de Ouro da Berlinale 2024 e exibido aqui na Mostra de São Paulo do ano passado, "Filhos" se integra ao chamado "cinema penitenciário", um filão sociológico de tom quase sempre naturalista (ou seja, a arena dramatúrgica reflete nos personagens múltiplas vicissitudes excludentes do meio social) que rendeu thrillers, dramas, sci-fi ("A Fortaleza", com Christopher Lambert) e... pasmem... comédias, como "Golpe Baixo" (2005), com Adam Sandler. Figuram nessa linhagem, desbravada na televisão pelo seriado "Oz" (1997-2003), títulos como "Clemência" (2019), com Alfre Woodward; "Instinto" (também de 2019), com Carice van Houten; "Leonera" (2008), com Martina Gusmán e Rodrigo Santoro; "À Espera De Um Milagre" (1999), com Tom Hanks; "Condenação Brutal" (1989), com Sylvester Stallone; "Brubaker" (1980), com Robert Redford; e "Rebeldia Indomável", com Paul Newman (1925-2008). Destaca-se ainda uma leva de produções sobre mulheres em condição de encarceramento, como o seminal "Celas Em Chamas" (1974), de Jonathan Demme (1944-2017), e "As Condenadas da Prisão do Inferno" (1971), com Pam Grier.

No Brasil, flanou-se por esse registro de gênero no blockbuster "Carandiru" (2003) e em joias de Aly Muritiba, como "A Gente" e "Pátio", com o acréscimo da série "Carcereiros", com Rodrigo Lombardi, e o longa dela derivado. Integre a esse bonde o documentário "Cativas: Presas Pelo Coração" (2014), de Joana Nin, e "O Cárcere e a Rua" (2005), de Liliana Sulzbach.

Cada vez que se retoma essa tradição, um debate plural, com pés fincados em Michel Foucault (1926-1984) e seu "Vigiar e Punir" (1975), é aberto pelo audiovisual, a fim de entender que sociedade é capaz de moldar uma seleção tão farta de ferrabrases. A pauta é: em que ponto a forma da cidadania modelo desandou e gerou monstros? O Mikkel, de "Filhos", serve pra nós de bússola num estudo sobre os descontroles morais que a Escandinávia sazonalmente produz, apesar de sua aparente microfísica de tolerância, ao avançar por um terreno - o ódio - onde o diálogo "civilizado" não parece mais ser possível. Tampouco o perdão.

Um episódio renegado do passado de Eva a impede de perdoar. O tal fato a impele a mudar de zona em seu emprego e criar uma dinâmica quase sadomasoquista com Mikkel, na qual o limite entre prazer perverso e consciência pesada é tênue. Remoso, analisado em ambientes claustrofóbicos, é o objeto por excelência do realizador sueco Gustav Möller, que alcançou holofotes em 2018 com "Culpa", de 2018. Sua destreza na condução do suspense (mais uma vez) é notável, amplificada pela montagem taquicárdica de Rasmus Stensgaard Madsen. Toda a tensão é arrematada pelo colorido seco da fotografia de Jasper J. Spanning, que nos põe numa panela de pressão a ferver. A fervura segue em temperatura máxima.

Lugares de escuta, naquele ambiente, são trôpegos. Palavras mais parecem elementos assessórios no argumento escrito pelo cineasta com Emil Nygaard Albertsen, mas não são. No princípio, contam mais as suspeitas que criamos a partir das ações vacilantes de Eva, em olhares perdidos, e expressões de espanto e de desconforto. Cria-se, de cara, um senso (moralizante) acerca dela, num encaixe provisório no arquétipo de heroína. A seguir, a realização precisa de Möller vai esgarçando o enredo e consolidando uma dialética, que se verticaliza nos conflitos da protagonista de modo a fraturar as nossas certezas sobre ela, sobretudo as mais melodramáticas. A majestosa atuação de Sidse torna o filme um espetáculo, daqueles imperdíveis.