Sob a concorrência pesada do novo "Superman" (que tem faturado aos tubos) e da versão em carne e osso de "Lilo & Stitch" (que bateu US$ 1 bilhão de receita no domingo), a França está vivendo um 2025 difícil em seus complexos exibidores, sem conseguir que seu próprio cinema emplaque blockbusters a granel, como está acostumada. Em 2024, a pátria de François Truffaut contabilizou cifras vertiginosas com a produção audiovisual gestada em Paris, Marselha, Nice e arredores. Viu uma comédia, "Un P'tit Truc En Plus", vender 10,8 milhões de tíquetes, além de testemunhar o épico, "O Conde de Monte-Cristo" arrastar 9,2 milhões de espectadoras/es.
Este ano, só três longas-metragens franceses peitaram a hegemonia hollywoodiana: "God Save the Tuche", com 2.787.858 pagantes; "Ma Mère, Dieu et Sylvie Vartan", com 1.506.916 ingressos vendidos (e ainda em cartaz); e "Un Ours Dans Le Jura", que vendeu 1.468.640 entradas. Tem coisa boa ainda por vir por lá, até dezembro, como a sci-fi "Chien 51", de Cédric Jimenez; a biopic em duas partes "De Gaulle", de Antonin Baudry; a fantasia "Kaamelott: The Second Chapter", que dá continuação ao recordista homônimo de público de 2020, sobre a Távola Redonda; e o badalado "Nouvelle Vague", dirigido pelo americano Richard Linklater, porém ambientado em terras parisienses. O que falta nesse pacotão é algo com balacobaco igual ao de "Monsieur Aznavour", um fenômeno francófono de público que estreia aqui nesta quinta.
Esse foi um dos maiores fenômenos do Festival de Cinema Europeu Imovision, realizado aqui em abril, pelo distribuidor Jean Thomas Bernardini. Com 2.054.791 ingressos vendidos ao longo dos três meses de sua carreira comercial nas salas de projeção de Paris, "Monsieur Aznavour" inicia agora uma trajetória pelas telas do Velho Mundo - já com as Américas no radar - com fôlego para renovar a rentabilidade da pátria de Emmanuel Macron planeta adentro. O ator Tahar Rahim, revelado em 2009 com "O Profeta", é seu protagonista e soma novos elogios a cada projeção desse drama biográfico baseado nos feitos - leia-se "no cantar" - de Shahnur Vaghinak Aznavourian (1924-2018), celebrizado entre nós como Charles Aznavour. Na direção, a dupla de cineastas Mehdi Idir e Grand Corps Malade, responsáveis também pelo roteiro, acompanham a transformação de um jovem de origem armênia - sem eira, nem beira, nem franco algum no bolso - num ídolo mundial, sob os acordes de hits canoros que ganharam tímpanos, via rádio, numa escala planetária. "La Bohème" e "Emmenez-moi" estão entre as baladas mais famosas de uma trilha que faz plateias suspirarem. Numa interpretação comovente, o próprio Rahim canta "Les Comédiens", "Mé Qué Mé Qué" e "Trousse Chemise".
Aznavour em pessoa facilitou a vida dos realizadores e do astro. Além de ter emprestado seu carisma ao já citado François Truffaut, nas rodagens do longa "Atirem No Pianista" (1960), e a Atom Egoyan, nos sets de "Ararat" (2002), ele filmou-se muito, não num ato de vaidade, mas num empenho de inventariar suas andanças e conquistas para que as intolerâncias de um continente assolado pela xenofobia não apagassem tudo o que experimentou. Por isso, entre viagens pela África, a Ásia e os EUA, em meio a amores que vão e amadas que ficam, no fluxo do reencontro com suas origens na Armênia, o rouxinol francófono sempre teve uma filmadora consigo. Registrou, ao longo de 34 anos, os bastidores de uma vida dedicada ao prazer de cantar... e à arte de saber viver. Esses registros foram feitos numa câmera Paillard-Bolex recebida como um presente na época em que se apresentava com Édith Piaf (1915-1963). A diva da voz aprece com destaque em "Monsieur Aznavour", interpretada por Marie-Julie Baup. Outro canário belga da França, Charles Trenet (1913-2001), aparece em cena também, vivido por Dimitri Michelsen.
A maior parte desse material filmado por Aznavour foi reunido e decantado pelo cineasta Marc di Domenico, na década passada. Reunidos e analisados frame a frame, eles se tornaram a argamassa de um (belo) documentário, lançado na Europa em 2019. Num gesto de generosidade digna de grandes artistas, Marc definiu "Le Regard de Charles" como "um filme de Aznavour realizado por Domenico".
Em 2017, Aznavour veio ao Brasil para um par de shows, realizados em São Paulo (no Espaço das Américas) e no RJ (no Vivo Rio). Na ocasião, ele concedeu uma entrevista ao Correio da Manhã, na qual refletiu sobre sua longeva aposta nas melodias de "Que C'est Triste Venise" e "Et Pourtant". Poucos antes, em 2015, lançou seu último álbum, "Encores", com faixas de dar nó na melancolia como "Des Ténèbres À La Lumière", "Et Moi Je Reste Là" e "Mon Amour Je Porte En Moi".
"Passei toda uma vida a cantar aquilo que os corações desejam, numa mistura do que poderia ser combativo com hinos românticos", disse Aznavour numa de suas últimas entrevistas, dada ao Correio há cerca de sete anos. "Desde o início da década de 1950, quando gravei meu primeiro álbum, o meu repertório se construiu sob a certeza de que você não pode impor uma tendência ao público. Um sucesso se cria pelo gosto e pelo afeto das multidões".
A partir deste fim de semana, redes exibidoras brasileiras vão testar essa máxima, à luz do carisma de Rahim, que brilhou no Festival de Cannes, em maio, no elenco de "Alpha".