Sai de baixo que Miguel Falabella tá na área. Prestes a voltar às telenovelas globais, no elenco de "Três Graças", de Aguinaldo Silva, o multiartista (ator, dramaturgo, diretor teatral, cineasta) vai concorrer aos troféus Kikito do Festival de Gramado, de 15 a 24 de agosto, na Serra Gaúcha, com seu novo trabalho como realizador: "Querido Mundo".
Nele, a queda de uma ponte numa noite de tempestade une os mundos de Elsa (Malu Galli) e Oswaldo (Eduardo Moscovis), que acabam por se encontrar no Rio de Janeiro às vésperas do Ano Novo, nos escombros de um prédio abandonado por seus construtores.
Enquanto a produção não pede passagem ao Deus Sol dos Pampas, que serve de símbolo sorridente ao evento do Rio Grande do Sul, Falabella se espalha pelo streaming, encontrando espaço para seu (essencial) "Veneza" navegar por outras águas, agora na corrente da Disney .
Lançado em 2019, mas atropelado em circuito pela covid-19, o longa-metragem pilotado por Falabella em locações no Uruguai, com a diva espanhola Carmen Maura à frente de seu elenco, potencializa a grade da plataforma de Mickey Mouse.
Sua trama tem como base a peça teatral homônima do argentino Jorge Accame, encenada pelo próprio Falabella nos palcos do Rio em 2003. Já na montagem, o eterno Caco Antibes adicionou algo de pessoal ao universo de um bordel decadente e sua cafetina chefe, que já não enxerga.
De certa forma, "Veneza" é uma carta ao tempo. Uma carta de amor que, por sê-lo, não teme cair no ridículo do desvario romântico, filtrado pela cinefilia de Falabella. Trata-se de uma fábula de amor, humor e lágrimas que extrai do showman carioca um lampejo de Almodóvar e um quê de "Amarcord" (1973). "Todas as referências que trago do cinema do passado, aquele que ficou, de Fellini a Tim Burton, embrulham essa narrativa", disse Falabella ao receber o Correio da Manhã no set, nas imediações de Montevidéu.
Tendo como diretor assistente o sino-brasileiro Hsu Chien Hsin, o longa foi produzido por Julio Uchôa, da Ananã, empresa responsável pelos milhões arrecadados pela franquia "SOS - Mulheres ao Mar" e pelo cult "Soundtrack" (2017). Falabella contou ainda com o aporte fino de Fernando Muniz, produtor do cultuado "Cinema Novo" (troféu L'Oeil d'Or em Cannes, em 2016), hoje em cartaz no Rio com "Filhos do Mangue". Com o empenho desses produtores, "Veneza" pode ser parcialmente rodado. É lá que Gringa (Carmen Maura) sonha acertar as contas (leia-se reatar uma velha paixão) com o único homem que a amou de verdade. Mas ela acabou roubando o sujeito. O dinheiro do roubo bancou a sua casa de prostituição. Esse investimento rendeu a ela anos de culpa, numa relação de rapinagem que nos leva a uma evocação de Emily Dickinson (1830-1886), poeta de quem Falabella é fã: "Nem para o amor eu tive tempo —/Já que/Muito de mim tinha que dar —/O vão labor que o amor pedia/Achei/ Duro demais para aguentar". Agora, mais velha, sem poder ver, dickinsoniana, Gringa sonha ir pro Lido de novo, a fim de ser feliz.
Nem todas as suas funcionárias têm disposição para sonhar, como comprova a rabugenta Jerusa (Danielle Winitis, em irretocável atuação). Já outra tem sonhos de mudar de vida ainda ligados a um ideal de vida a dois, como prova a (trágica) trilha de Madalena, personagem que deu a Carol Castro um merecidíssimo Kikito de melhor coadjuvante em Gramado, há seis anos. Seu olhar carrega algo "imparável" da Gena Rowlands de "Uma Mulher Sob Influência" (1974).
Entre ressacas, tangos e tragédias, ainda existe espaço para a bondade no rendez-vous de Gringa. Embrulhado na finíssima direção de arte Tulé Peak (também laureada em Gramado) e num inventivo figurino de Bia Salgado, esse experimento de Falabella por trás das câmeras investiga a noção moderna do que é ser bom, nas quebradas do mundaréu, apoiado nas figuras de uma garota de programa veterana, Rita (Dira Paes), e de um assíduo freguês da personagem de Carmen: Tonho, papel que comprova as múltiplas ferramentas cênicas de Eduardo Moscóvis. Rita e Tonho são os filhos que a arrependida Gringa não teve. Ao embarcarmos na história dela, tornamo-nos parte dessa sua família, e da família Falabella.