Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Da lama ao caos (da reinvenção)

Felipe Camargo tem desempenho estonteante em 'Filhos do Mangue', de Eliane Caffé, que estreia neste fim de semana | Foto: Pé na Estrada Filmes

Samurai ribeirinho, Pedro Chão, o protagonista de "Filhos do Mangue", chafurda num lamaçal existencial, com o fio cortante da acusação em seu pescoço, a fim de buscar um dos bens mais preciosos da condição humana: a recordação. A fama de mau que o precede parece não fazer justiça ao homem que ele se tornou depois de aparecer ferido e sem memória num povoado que tem muitas razões para odiá-lo. A travessia que esse sujeito engata, a fim de reconhecer-se e exorcizar culpas das quais não se lembra, assegura ao circuito carioca um espetáculo poético com a grife de Eliane Caffé na direção. Desbravar Brasis é sua onda.

Basta ver algumas joias de sua carreira: "Kenoma" (laureado em Biarritz, na França, em 1998) e "Narradores de Javé" (indicado ao troféu Tigre do Festival de Roterdã, na Holanda em 2003). É de sua natureza ainda arrancar atuações viscerais de suas estrelas, o que Felipe Camargo comprova, e bem, nesse seu novo longa-metragem, que acaba de estrear no Rio. A fita saiu do Festival de Gramado de 2024 com dois Kikitos (o troféu do evento): Melhor Direção e Atriz Coadjuvante para Genilda Maria.

Na preparação das filmagens, no Rio Grande do Norte, na região de Barra do Cunhaú, Eliane conversou com o Correio da Manhã e explicou: "O mangue representa a nascente do modo de vida da pesca familiar que está sendo devorada pelos empreendedores do lucro e do capital. Ao mesmo tempo, o mangue é a expressão da natureza mãe de onde todos os seres vivos, incluindo nós, somos energizados", disse a realizadora de títulos premiados como "Era o Hotel Cambridge", que representou o Brasil no Festival de San Sebastián, em 2016.

Sua inquietação criativa gera um personagem para ficar no imaginário audiovisual do país, à luz do empenho de Camargo.

 

Macaque in the trees
A diretora Eliane Caffé e o produtor Fernando Muniz no set de filmagem de 'Filhos do Mangue' | Foto: Divulgação

"A solidão do Pedro Chão é a solidão de qualquer homem, de qualquer ser humano… O trauma que ele carrega do abandono, da lacuna da mãe que não existe na vida dele, que pode ter morrido ou simplesmente sumido, marcam a infância e o desenvolvimento desse homem", explica Camargo. "Ele tem um buraco enorme dentro dele… um sentimento de rejeição na raiz da sua existência. A perda da memória quase que zera tudo e faz com que ele se veja apenas no olhar dos outros. Ele acorda dentro do próprio julgamento. Essa espécie de Juízo Final, ao mesmo tempo que cria a possibilidade de ele se ver como nunca tinha se visto, cria também a chance real de ele se redimir e de se reinventar. Acho que todos nós - cada um com sua vida, seus traumas, seu caminho e consciência - temos a chance de fazer isso todo dia: conseguir se olhar por inteiro, enxergar a dimensão dos próprios atos - bons ou ruins - e tentar se melhorar. Esse talvez seja o grande desafio da existência".

Eliane explica ao Correio que o "Filhos do Mangue" reafirma a riqueza de um processo de criar em coletivo e expandir as fronteiras temáticas. "Precisamos expandir, pois com os meios tecnológicos sob a batuta do mercado e do capitalismo, podemos estar estreitando nossas mentes sem conseguir sonhar mundos diferentes", diz a cineasta.

O roteiro de "Filhos do Mangue" é do eterno colaborador de Eliane, o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, autor de "Lima Barreto ao Terceiro Dia". Abreu proseia com a literatura de Sérgio Prado, no romance "O Capitão", para extrair um lirismo peculiar ao universo de Caffé, já decidida a abrir importantes participações pros moradores do Cunhaú e pra população indígena Potiguara Katu (RN). Na produção, estão Beto Rodrigues e Fernando Muniz, que hoje opera em Portugal, apostando em projetos autorais, e tem no currículo "Cinema Novo", de Eryk Rocha, e "Veneza", de Miguel Falabella. Esse time produziu um poema de redenção.

"O maior desafio foi entendermos a dinâmica da natureza do mangue e filmar no corpo a corpo com elenco, equipe e natureza" explica Eliane, ao Correio. "Às vezes penso que se a IA dominar o cinema, perderemos essas experiências que são transformadoras na pele e na alma de quem está no front das criações. O aprendizado quando saímos de nossas bolhas onde supomos que dominamos os códigos do universo, é gigante, e fica gestando dentro da gente por muito tempo. Depois de uma semana com o corpo na lama do mangue, poder sentar em roda e tocar um tambor, ou biritar conversas é outra dimensão do humano que nos falta muito nas grandes cidades".

"Filhos do Mangue" é uma realização da Pé na Estrada Filmes, com patrocínio da Protege e Britânia. Apoio: Sebrae, Pousada Vila da Barra, Pousada do Forte, Naturezatur, Coco Mango, AOC (Associação de Ostreicultores de Canguaretama), Aldeia Indígena Katu e prefeitura de Canguaretama. A distribuição é da Bretz Filmes. A fita foi produzida com recursos públicos operados ou geridos pela Ancine, BRDE e FSA.