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Costa-Gravas: 'O cinema que eu faço não é panfletário, é espetáculo'

Costa-Gavras no set de filmagens de 'Uma Bela Vida' | Foto: Filmes do Estação/Divulgação

 

Presidente do júri da Berinale que deu o Urso de Ouro a "Tropa de Elite", em 2008, Costa-Gavras já bateu pesado na mídia ao longo de seis décadas de carreira, com direito a um filme sobre jornalismo: "O Quarto Poder" ("Mad City", 1997), em que dirigiu John Travolta e Dustin Hoffman. Bater em ditaduras (as latino-americanas), ele também bateu, vide "Estado de Sítio" ("État de Siège"), que lhe rendeu uma indicação ao Globo de Ouro, em 1974. Desbravar os conflitos da Faixa de Gaza, ele desbravou, analisando tensões entre Israela e a Palestina via "Hanna K.", lá em 1983, com Jill Clayburgh em estado de graça. Sobre racismo ele também falou, com fúria. Supremacistas foram o alvo de seu "Atraiçoados" ("Betrayed", 1988), com Debra Winger e Tom Berenger. Xenofobia foi o mote dele em "Paraíso a Oeste" ("Eden à l'Ouest", 2009), nunca lançado comercialmente por aqui, onde foi exibido só na Rede Telecine e no Cine PE, no Recife. Contabilidades bancárias predatórias inspiraram seu "Le Capital" (2012), com Gabriel Byrne e Gad Elmaleh. Ou seja, todos os ovos de serpente conhecidos pela sociedade ocidental foram chocados ao longo de seus 60 anos de carreira, que se abriu ao amor em "Um Homem, uma Mulher, uma Noite" ("Clair de Femme"), drama romântico indicado ao Leão de Ouro de 1979, que ficou quase um ano em cartaz no Brasil. Essa variedade de assuntos sempre foi modulada por um recorte autoral que o realizador explicou ao Correio da Manhã num papo durante o 72° Festival de San Sebastián, onde lançou "Uma Bela Vida" ("Le Dernier Souffle"), que chega às telas nesta quinta, e durante o Festival de Locarno, na Suíça, onde foi homenageado.

O que assegura a um longa-metragem "um filme político"?

Costa-Gavras: Não existe nada mais político no mundo atual do que o amor. Se eu fizer uma love story, estarei fazendo um gesto político. A questão nesse rótulo é a confusão que se faz, no senso comum... na mídia... entre as palavras "Poder" e "política". Poder é controle. Política é administração de relações coletivas. "Édipo Rei", a tragédia grega milenar, é um thriller. É um thriller político. Ele não fala de votos, de plebiscitos, mas fala de como lidamos como pessoas à nossa volta. Relações são políticas. Eu não me posiciono em prol dessa ou daquela ideologia. O que eu defendo é a liberdade. Confunde-se essa defesa, humanista na essência, com panfleto. O cinema que eu faço não é panfletário, é espetáculo. O caminho do espetáculo abre diálogo.

Durante a ditadura brasileira de 1964 a 1985, o senhor era chamado de "comunista". O que essa classificação significa hoje?

Meu tema é democracia e, para falar dela, eu preciso combater a injustiça. Isso incomoda, por isso me associam a correntes políticas.

Existe uma dimensão democrática de defesa da dignidade em meio ao risco da morte que dá estreio dramatúrgico a "Uma Bela Vida". De que forma a sua abordagem expõe as posições políticas da Europa em relação a eutanásia e aos cuidados paliativos?

Eu tinha o livro "Le Dernier Souffle" na base da estrutura do projeto e fui visitar Dr. Claude Grange (um dos autores) em seu trabalho. No ambiente de Grange, a equipe médica e a de enfermagem sorri para pacientes, como se elas/es fossem crianças, recebendo atenção a cada demanda do dia a dia. Cuidadoras/es podem fazer as pessoas doentes experimentarem o acolhimento.

O senhor passou a ser admirado como realizador, nos anos 1960, por seu estilo nevrálgico de mover a câmera, com uma edição veloz, de cortes rápidos. Esse novo filme, entretanto, é sereno, mais contemplativo. O que mudou?

O roteiro pedia isso e a narrativa que construímos com a câmera é sempre uma resposta ao que a dramaturgia pede. A morte hoje me preocupa. Na minha idade, o horizonte do fim se aproxima mais e mais e estou interessado na melhor forma de morrer. Quero estar preparado para morrer com dignidade. Essa é a palavra. O Estado deveria ter a coragem de apoiar quem quer morrer. Em certos países, essa opção é possível. Godard, por exemplo, decidiu morrer (e cometeu suicídio assistido, na Suíça, em 2022). Toda religião, até a dos povos bárbaros, em tempos anteriores da História, diz que o indivíduo não tem o direito de decidir como morrer. Muita gente acredita em Paraíso e eu respeito as crenças alheias. Não quis que o filme fizesse uma crítica aos ideais religiosos, mas quis incorporar outras perspectivas, como a dimensão cultural africana e a visão dos ciganos.

O senhor já falou no passado que "um roteiro não filmado é como uma história de amor não realizada". Que experiência afetiva essa nova empreitada lhe traz agora, aos 92 anos?

Fazer um filme é uma história de amor e esse amor precisa durar até o fim, da feitura ao lançamento. Há que se ter uma relação de afeto e de carinho com o trabalho.