Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Cartografia de resiliências sob o olhar de Eunice Gutman

Eunice Gutman, uma cineasta essencial para as lutas feministas travadas no Brasil desde os anos 1970 | Foto: Acervo Pessoal

Lugar de escuta é o que não falta no procedimento dramatúrgico de Eunice Gutman, cineasta essencial para as lutas feministas do Brasil, que terá a ribalta do Estação NET Botafogo, nesta quarta-feira, a partir das 20h, onde vai expor ideias (em imagens) sobre as representações das identidades femininas no audiovisual. Faz pouco, essa documentarista, conhecida por "Vida De Mãe É Assim Mesmo" (1983) integrou um coletivo de artistas, estruturado pela realizadora Nicole Algranti, para transformar a prosa de Clarice Lispector (1920-1977) em segmentos de um longa-metragem. Filmou "Mal-Estar De Um Anjo" para o projeto, que vai nascer já, já.

O que será exibido na telona da Rua Voluntários da Pátria nº 88, seguido de debate com a poeta, escritora e pesquisadora Susana Fuentes, é "A Rocinha Tem Histórias" e "E O Mundo Era Muito Maior Que A Minha Casa", recentemente restaurado pela Cine Limite. Memórias de um cotidiano pouco conhecido costumam ser uma das bússolas de Eunice nas telas e nutrem uma filmografia que ultrapassa matrizes etnográficas na criação de uma poética de inclusão.

"Mulheres: Uma Outra História", de 1988, é um dos trabalhos mais conhecidos da realizadora, que ganhou uma exposição nas Casas Casadas, em 2022. À época, Eunice explicou ao Correio da Manhã: "No meu mergulho no social, chega um momento em que eu descubro que o pessoal é político. Daí o meu interesse ter se tornado bem maior pela condição da mulher na sociedade, o que, no fundo, traduz a minha experiência de vida".

O que o Estação NET Botafogo confere nesta quarta é uma obra pautada pela delicadeza. Em "Duas Vezes Mulher", no Vidigal, a câmera de Eunice mostra uma rua cavada e erguida por Jovina, uma das personagens. É a rua a qual ela deu nome. Rua que ela e suas colegas de bairro construíram. Lá, os objetos dentro de sua casa, mais que detalhes, são uma extensão de uma urgência na construção de um teto, na manutenção de um lar. Ali, barro e tijolo são ventres que geram acolhimento. No filme "Nos Caminhos do Lixo", sobre as catadoras de Jacutinga, a cineasta filma mulheres que catam material reciclável e começaram a viver disso, formando cooperativas. Com isso tiraram carteira de identidade, aprenderam a ler e a administrar suas vidas e se organizarem. Elas se fortalecem conjuntamente, em grupos que se apoiam. É um estudo sobre sororidade, numa mirada geopolítica

Num empenho de entender o lugar das mulheres na religião, Eunice rodou "Feminino sagrado", no qual encontrou uma freira, numa periferia, que rezava a missa porque não havia padres no local. Nesse filme, vemos as religiões de matrizes africanas, nas quais as mulheres têm papel preponderante. Numa investigação do povo judeu, ela buscou por mulheres que liam a Torah. "Em cada filme, encontro mulheres que são, naturalmente, lideranças e procuram construir o lugar onde viviam. Ou que lançavam uma perspectiva nova", disse Eunice ao Correio.

Questões sociais, como a leitura, desenham "A Rocinha Tem Histórias". O importante ali era que as crianças queriam ser representadas nos livros escolares, contando aquilo que imaginam da vida, sob o filtro da fantasia e da esperança. Era importante o fato de que as mulheres que fundaram as escolas comunitárias tinham um olhar para aquelas crianças, filhas de migrantes do Nordeste que viviam na comunidade e não conheciam o asfalto.

Quando Eunice entrou para o cinema, nos anos 1970, o documentário era mais acessível ao produtor independente em termos de orçamento. Em seus caminhos pela criação, ela abraçou a não ficção como meio de buscar a voz das mulheres, fossem elas crianças, jovens adultas ou pessoas 60 mais, como a senhora que aprende a ler, aos 77 anos, em "E O Mundo Era Muito Maior Que A Minha Casa". A escolha do título vem do seu depoimento, quando ela conta o que descobriu depois que aprender a ler. Era pelo programa do Mobral. Esse documentário dispensou a narração de um locutor, como era comum na década de 1970 e 80, usando a voz dos próprios personagens. Foi já um desbravamento, numa criação intimista, na qual as personagens se revelam sequência a sequência.

Ali Eunice cria uma grafia sinestésica singular, que faz dela uma gigante em sua cartografia de resiliências.