Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Luiz Carlos Lacerda: 'Prefiro viver!'

Luiz Carlos Lacerda, o Bigode | Foto: Alisson Prodlik/Divulgação

Imperialismos não descem pela garganta de Luiz Carlos Lacerda, o Bigode. Preconceitos, menos ainda. Geram indignação. Dela brotam posts, com os quais ele ilumina o Facebook com ironia, e brotam os versos com o qual ele vem apimentando a poesia brasileira na métrica do desejo. Indignar(-se) é o verbo que move seu cinema, desde 1971, quando a estreia de "Mãos Vazias" decretou sua consolidação no posto de realizador.

Estreou carregando lastro de saber invejável. Outrora assistente de um dos pilares do audiovisual moderno latino-americano (Nelson Pereira dos Santos), Bigode criou uma obra particularíssima. Feito o italiano Ettore Scola (1931-2016), desenvolveu um estilo cronista sobre os sentimentos feios, sujos e malvados que a sociedade capitalista usa para segregar nós que nos amávamos tanto. O baile que deu na caretice veio da celebração do gozo, já expresso em seu notável "O Princípio do Prazer" (1979).

Dali pra frente, escrevendo e produzindo, pilotou documentários e ficções a granel, com muitos curtas (o mais recente, "Celebrazione", sobre Pier Paolo Pasolini, é um achado), algumas séries e um punhado de delicados longas. Cada um, à sua maneira, flagrava alianças e pactos na luta diária dos que margeiam o cabresto da moral. Ganhou o Kikito de Melhor Filme pelo mais exuberante deles, "For All: O Trampolim da Vitória" (1997), que o Canal Brasil exibe nesta terça, às 20h, como arranque de uma retrospectiva que celebra as 80 primaveras de pura vitalidade e tesão desse diretor avesso a caretices. Nasceu em 15 de julho de 1945 e, moço ainda abraçou a arte, tendo o cinema como bússola. Filmou pérolas como "Leila Diniz", de 1987, e "A Mulher de Longe", de 2012, que vão compor o pacotão dessa mostra na TV a cabo.

 

O cinema está presente na minha poética

Luiz Carlos Lacerda, o Bigode | Foto: Divulgação

Professor de muitos talentos atualmente na ativa, formados nas oficinas que ministra por todo o país, Luiz Carlos Lacerda entra para o clube dos artistas octogenários trabalhando herculeamente. O filme que, já, já, ele manda para o forno, é um documentário sobre o cineasta, produtor, judoca e agitador cultural Carlos Vinícius Borges, o Cavi.

"Só não envelhece quem morre antes", desabafa Bigode. "Claro que chegar aos 80 tem, do lado físico, as limitações que surgem, especialmente pra quem exorbitou a vida em sua juventude. E administrar perdas na família e de amigos é doloroso", completa.

"Mas aquilo que nos mantém vivos é ter planos, projetos. Isso eu tenho sem parar. Não terei tempo para realizar todos. Assim como não vou poder reler todos os meus livros preferidos, mas a cabeça... essa não para. Gosto de viver, conviver, amar, comer bem, viajar, estar com meus jovens alunos e meus assistentes. Gosto da companhia de meus velhos amigos sobreviventes", ensina o realizador, que jamais perdeu o gosto de filmar e repassar seu conhecimento nas aulas que dá.

"Tenho orgulho de ter ajudado a formar uma nova geração para o cinema brasileiro. O que me dá imensa alegria é constatar que consegui repassar uma postura de combate ao colonialismo cultural", comenta. Vale saber o que esse artesão autoral conta ao Correio no papo a seguir.

Que imagem - uma só - de tudo o que você já filmou seria capaz de sintetizar a sua obra e a sua visão artística no audiovisual?

Bigode: A imagem que sintetiza não somente os filmes que faço, mas todo o cinema brasileiro, na sua linguagem comprometida com a nossa cultura, na viabilidade de se produzir filmes no Brasil, é a imagem de Nelson Pereira dos Santos. Eu homenageei meu mestre em dois filmes sobre sua obra: "Nelson Filma", de 1970, e "Nelson Filma o Rio", de 2021.

Fazer 80 anos traz que sensação quando se pensa nos verbos "envelhecer" e "resistir"? De tudo o que você viu e do tanto que já viveu, de 1945 para cá, o que mudou... para melhor... sobretudo em relação ao preconceito e ao sexismo, dois inimigos de sua arte?

O que mudou sobre essa questão do preconceito na área cultural, especialmente no cinema brasileiro, está refletido nas dezenas de festivais que celebram a Diversidade, como o Rio LGBTQIA 2025 (que recém me homenageou); o ForRainbow de Fortaleza, da guerreira Veronica Guedes; o Mix Brasil; o Festival da Diversidade em Goiás; e o Prêmio Felix para essa categoria no Festival Internacional do Rio. A mudança também se reflete, tristemente, na onda violenta do conservadorismo em reação aos avanços da sociedade brasileira em todas as áreas.

De que maneira poesia e cinema se misturam na sua forma de filmar e na sua prática de escrita?

Assim como a poesia está presente nos meus filmes - além de ser tema de vários documentários e séries -, o cinema está presente na minha poética, no afloramento das imagens que o meu inconsciente acumula, seja na memória dos filmes a que assisti, seja na forma com que as organizo espontaneamente.

O que o projeto de .doc sobre Cavi Borges promete? Que filme você encontra agora na ilha de edição com o montador Tainãn Hsu?

Realizar um filme sobre o Cavi é uma forma de reverenciar um dos personagens contemporâneos mais representativos da resistência cultural, formador de uma nova geração, que mergulha nos nossos valores, informa - sem xenofobia - o histórico do que se produziu em todas as cinematografias, e demonstra a nossa capacidade produtiva, que independe dos editais oportunistas, disfarçados de inclusivos, mas que criam uma nova exclusão, etarista, e que rejeita a luta de gerações que construíram tudo o que significa o cinema brasileiro independente.

De tempos em tempos, você cita, em seus posts, o já mencionado Nelson Pereira dos Santos, a quem chama de mestre. Que história vivida com ele, nos sets, melhor sintetiza o que aprendeu com esse realizador, aclamado mundialmente?

Minha vivência com meu mestre NPS começa na minha infância, quando meu pai, João Tinoco de Freitas, um dos produtores de seu "Rio, 40 Graus", hospedou-o no seu estúdio, no Jacarezinho. Lembro de sua presença nos almoços de domingo que meu pai promovia em nossa casa, onde se discutiam os rumos do cinema brasileiro. Aos 19 anos, depois de trabalhar como assistente do diretor Ruy Santos, conheci Nelson de perto, em seis longas dele. O que mais me impressionou nos sets era sua capacidade criativa, improvisada, com que resolvia os problemas de produção que surgissem. Ele dizia: "Só não filma quem não quer!". Eu me lembro do seu carisma e de seu apaixonante magnetismo, revelador de sua paixão pelo próximo, de sua solidariedade. Só quem teve esse privilégio poderá avaliar isso.

Quais são seus próximos planos na literatura, como poeta?

Meus últimos livros de poesia foram: "Amorosa Ciência", com versos escritos na juventude, encontrados na Feira de Antiguidades da Praça XV, e "Labirinto Febril", com poemas escritos na quarentena da covid-19. Ambos foram publicados em 2024. Antes, teve "Reis de Paus", de poemas eróticos, com capas pintadas, uma por uma, pelo Victor Arruda. Esse foi lançado em 2017. Agora, estou escrevendo poemas pornográficos, dessacralizando o gênero que Gregório de Matos representou no século XVII. Os amigos me cobram um livro de memórias. É tanta coisa vivida, tantas histórias. Mas a quem poderia interessar? Não tenho tempo para escreve-las. Prefiro viver! E filmar... Além do projeto sobre o Cavi, iniciei as filmagens de um documentário sobre o pintor Alberto Saraiva. É mais um para a série "Atelier Do Artista", que já contemplou Luis Aquila, Lucia Vilaseca, Paiva Brasil e Júlio Paraty.