Inédito em circuito brasileiro apesar de ter aberto o Festival de Veneza em 2019, "A Verdade" ("La Verité") passou por aqui só na TV (na antiga HBO) e flanou pelo streaming, da MAX para a Diamonf Films , onde pode ser visto hoje, mas não numa telona, daquelas aprumadas, de tamanho GG, tipo a que o Centro Cultural Banco do Brasil vai emprestar a essa joia, numa mostra dedicada a seu realizador, Hirokazu Kore-eda. No próximo dia 27, às 18h30, o CCBB-RJ confere a lavação de roupa suja entre mãe (Catherine Deneuve) e filha (Juliette Binoche) conduzida por esse artesão do melodrama, que deu ao Japão a Palma de Ouro de 2018, com "Assunto de Família".
A projeção é um dos pontos imperdíveis da retrospectiva do realizador. De 16 de julho a 8 de agosto, será apresentada uma seleção de 29 produções, com curadoria de Raquel Gandra, que inclui desde os primeiros trabalhos de Kore-eda para a TV, lá nos anos 1990, até seus longas mais recentes, além de lançar aqui um curta-metragem, "Última Cena", realizado este ano, via celular. Tem folhetim aos baldes nesse menu, mas tem também um suspense de tribunal, "O Terceiro Assassinato" ("Sandome no Satsujin", de 2017), que passa no dia 24, às 18h30. Ave rara numa filmografia de excelências, ele é uma chave para se decifrar uma estética que se debruça sobre o inaudito, o engasgo.
Indicado ao Leão de Ouro de Veneza, essa produção foi considerada um óvni na tradição de linha melodramática desse cineasta nascido em Nerima, noroeste de Tóquio, há 63 anos. Acostumado a falar de abandonos, desapegos e conexões afetivas seja pelo sangue, seja pela criação, Kore-eda (chamado de Koreeda em alguns eventos e bancos de dados) investe no medo e na tensão nesse estudo sobre embates judiciais.
"Esse filme surgiu a partir de uma conversa com um amigo advogado que me contou o quão difícil é lidar com a ideia de 'verdade' nas cortes japoneses: muitos crimes, por lá, não são decididos por culpa ou inocência, mas por conveniência. Os conflitos de interesse regem as nossas leis", disse Kore-eda ao Correio da Manhã em meio à projeção de "O Terceiro Assassinato" no Festival de San Sebastián, na Espanha, onde o longa-metragem foi ovacionado. "Pensei num enredo onde alguém decidisse usar a corte para fazer valer a veracidade dos fatos e não as convenções sociais ou morais do meu país. Existem questões de classe e existem questões da Justiça".
No Brasil, Kore-eda já é de casa e a maratona estruturada por Gandra é prova disso. Freguês da Mostra de São Paulo, onde já visitou com pompas de convidado de gala, em 2007, ele já confessou o interesse em fazer um filme sobre a colonização japonesas no Brasil, no interior paulista e no Paraná. Dramalhões dele como "Ninguém Pode Saber" (2004) e "Pais E Filhos" (Prêmio do Júri em Cannes em 2013) lotaram salas no circuito nacional de arte. "O Terceiro Assassinato" também mobilizou uma horda de pagantes aqui. Seu protagonista é o advogado Shigemori (Masaharu Fukuyama), um jurista de talento duvidoso que se deixa reger pela curiosidade ao defender Musumi (Koji Yakusho). O suposto criminoso tem um histórico carcerário violento, tendo sido condenado duas vezes. O delito de número três em seu histórico de crimes está cercado de uma certa inconstância, de mistério. Há uma conexão direta com o arrependimento, tema recorrente da estética intimista de Kore-eda.
"Meus filmes, todos eles, são focados na condição humana, e este não é diferente", diz Kore-eda. "Eu acabei sendo rotulado como diretor de folhetins porque passei anos tentando pensar as inquietações afetivas pelo prisma familiar, porém, mesmo nesse terreno do melodrama, eu abordo questões sociais. A abordagem do Direito em 'O terceiro assassinato' passa por um olhar sociológico. Foi assim que eu aprendi a fazer cinema: rodando documentários para a TV acerca de dilemas cotidianos de nossa sociedade. O que há de novo aqui é um design de dramaturgia diferenciado, mas no tempo, no tempo do suspense".
A partir de 1995, quando estreou na ficção com "Maborosi - A Luz da Ilusão", Kore-eda dirigiu uma leva de longas pautados pela invenção, e fez mais um punhado de documentários e telefilmes. Poucos diretores são mais prolíficos de que ele, que já foi comparado a um dos mais festejados cineastas de seu país, Yasujiro Ozu (1903-1963), de "Dia de Outono" (1960). Apesar da comparação honrá-lo, ele diz ter outras referências entre diretores autorais: de um lado, o inglês Ken Loach (de "Eu, Daniel Blake"), do outro, o conterrâneo Mikio Naruse ("Correnteza"), ambos cronistas da luta de classes.
"A influência mais ativa em mim eram os filmes com as atrizes Ingrid Bergman, Joan Fontaine e Vivien Leigh de que minha mãe gostava", disse Kore-eda ao Correio, em Cannes, ao ser laureado com o Prêmio de Melhor Roteiro por "Monstro", em 2023. "Vi a maioria deles na TV, porque não tínhamos dinheiro para pagar ingressos. Hoje, meus pais já se foram. Eu cultivo as lições sobre as lacunas que ausência de pessoas amadas deixam em nós".