Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Krypton é aqui: 'Superman', de James Gunn, chega às telas com poesia para salvar os filmes de super-heróis

O longa de James Gunn leva para as telas o cão Krypto. O mascote do Superman surgiu pela primeira vez em quadrinho da década de 1950 | Foto: Divulgação

No peito do Homem de Aço bate um coração que usa óculos: as lentes grossas de James Francis Gunn Jr. Ex-colaborador da fábrica de filmes e séries B Troma, o cineasta nascido em St. Louis, no Missouri, há 58 anos é quem escreve e dirige "Superman", um poema que resgata os poderes analgésicos (e revolucionários) da fantasia.

Ao assumir o posto, ele passou a carregar a responsabilidade de preservar o prazo de validade das narrativas audiovisuais estreladas por super-heróis no momento em que o filão se encontra em estado de alerta, contabilizando fracassos e rejeições. Kal-El, o último nobre reminiscente da aristocracia que regia o planeta Krypton, é o caminho que o realizador e produtor encontrou para repaginar as HQs da editora DC Comics na telona.

De suas graphic novels, minisséries e revistas mensais, Hollywood extraiu cults como a "Trilogia Batman", de Christopher Nolan; "Coringa", ganhador do Leão de Ouro do Festival de Veneza de 2019; e "Constantine" (2005), com Keanu Reeves em luta com o Arcanjo Gabriel. O longa do Homem-Morcego com Michael Keaton, dirigido por Tim Burton em 1989, e sua sequência ("Batman, O Retorno", de 1992), também merecem loas. Nada, contudo, chega a uma distância mínima de voo do Super-Homem com Christopher Reeve (1952-2004) lá de 1978 - que se perpetuou no imaginário cinéfilo. Nada até os latidos de Krypto.


 

Um Clark Kent longe do estereótipo criado por Christopher Reeve

David Corenswet criou um Superman que quebra o braço, sangra e se revela mais humano | Foto: Divulgação

David Corenswet, que mantém a linhagem kryptoniana viva (e adulta), na produção de US$ 225 milhões de Gunn, na qual assume o papel de Kal-El (e de seu alter ego, o repórter Clark Kent), é maroto o bastante para não copiar o jeitão apolíneo de Reeve. Aliás, a versão de Gunn é sobre o oposto de Apolo: seu Superman quebra o braço, sangra, toma tapa na cara, lida mal com os impasses do relacionamento (carnal) com Lois Lane (Rachel Brosnahan) e paga um preço por uma tomada de posição política ao intervir numa espécie de Faixa de Gaza fictícia. Fora isso, há um cachorro... que voa... que tem super mordida... e não sossega o rabinho, o já citado Krypto, baseado na mascote surgida no n° 210 do almanaque "Adventure Comics", em março de 1955, e inspirado no pet de estimação de Gunn.

Tem Superamigos também, não aqueles que a gente via no desenho homônimo das manhãs da Globo nos aos 1980, com os Super-Gêmeos Zan e Jayna, o Chefe Apache e o Samurai, mas uma trupe porreta, formada pela guerreira alada Mulher-Gavião (Isabela Merced), o inventor ricaço Sr. Incrível (Ed Gathegi) e o Lanterna Verde doidão Guy Gardner (Nathan Fillion). Essa é a turma que vai ajudar o personagem a lidar com um Lex Luthor que goteja xenofobia vivido em estado de graça por Nicholas Hoult.

Com tanto elemento bom a seu favor, Gunn pode dar seu recado de cabeça erguida, apoiado no prestígio que consolidou dirigindo os três volumes da franquia "Guardiões da Galáxia" (de 2014 a 2023) para a Marvel. O caminho que seguiu é distinto do épico com Reeve. Parece (até na confecção da direção de arte e no colorido de sua fotografia) com as artes gráficas, o que o aproxima de um almanacão de férias, tipo o extinto "SuperPowers", da editora Abril.

O filme dos anos 1970 era quase fabular. Coroado com uma bilheteria de US$ 300 milhões, "Superman, O Filme", em 78, driblava a linha realista que vinha ditando as regras das cartilhas hollywoodianas desde a década de 1960. O escritor Mario Gianluigi Puzo (1920-1999), autor do romance "O Poderoso Chefão", trabalhou no roteiro dessa famosa transposição do guardião de Metrópolis para as telas. De março de 1977 a novembro de 1978, o cineasta Richard Donner Schwartzberg (1930-2021) torrou um orçamento de US$ 55 milhões para filmar e finalizar uma adaptação cinematográfica das HQs de Jerry Siegel (1914-1996) e Joe Shuster (1914-1992). Antes dele, Guy Hamilton e Steven Spielberg foram cotados para assumir a direção.

James Caan, Burt Reynolds, Kris Kristofferson e Nick Nolte foram cotados para viver Kal-El, sobrevivente de Krypton que reside na Terra sob a identidade de Clark Kent, um repórter. Após uma série de testes, o papel acabou com Reeve, cuja atuação (irretocável) só é ofuscada pela de Gene Hackman (1930-2025) como criminoso Lex Luthor.

Com toques pontuais de humor e muita adrenalina, Gunn encarou com coragem a segunda kryptonita na bota do herói, que é a maldição que cerca os intérpretes de Kal-El/Clark Kent, a começar pelo mais icônico deles, o já citado Reeve. Nenhum ator teve sua imagem tão atrelada à figura apolínea criada em 1938 por Jerome Jerry Siegel (1914-1996) e Joseph "Joe" Shuster (1914-1992) quanto ele. A assombração em seu caso foi uma via de mão dupla. Confinado a uma cadeira de rodas após uma lesão cervical em 1995, Reeve jamais estrelou um longa de tanta popularidade e rentabilidade quanto o cult de Donner.

Antes, os atores Kirk Alyn (1910-1999) e George Reeves (1914-1959), que encarnaram o Super-Homem em séries dos anos 1940 e 50, também foram amaldiçoados: o primeiro perdeu a fama e isolou-se; o segundo foi encontrado baleado. Dean Cain, do seriado "Lois & Clark" (1993), também viu seu prestígio popular sumir. Em 2006, "Superman — O retorno" (2006) tentou fazer de Brandon Routh uma celebridade, mas ele caiu no ostracismo.

Henry Cavill, que interpretou o guardião de Metrópolis em "Homem de Aço" (2013), teve melhor sorte e alcançou firmes holofotes. Apesar disso, a nova versão do vigilante deixou-o de lado. David Corenswet assumiu a insígnia do S com garbo, trazendo algo vulnerável, e demasiadamente gente como a gente. Reeve teria orgulho.

 

James Gunn: 'Tudo na vida é política'

James Gunn dirigindo Nicholas Hoult (Lex Luthor) e David Corenswet (Superman) nos sets do novo filme do herói. | Foto: Jessica Miglio/ Warner Bros.

Por Pedro Sobreiro

Em 2021, em meio a pandemia, James Gunn iniciou sua transição da Marvel para a DC com o lançamento de 'O Esquadrão Suicida'. Na época, ele ainda trabalhava na conclusão da franquia 'Guardiões da Galáxia', mas era muito querido internamente pela Warner.

Infelizmente, por ter saído numa época de cinemas parcialmente abertos por conta da Covid-19, seu 'Esquadrão' fez uma baixíssima bilheteria. Ainda assim, a unanimidade da crítica acerca do projeto o chancelou a continuar e ganhar novas oportunidades na DC, até o momento da promoção ao cargo de CEO do novo Universo DC.

Com muita ousadia, Gunn trouxe para os cinemas uma crítica intensa aos efeitos do imperialismo e colonialismo americano na América Latina. E essa crítica social foi fundamental.

Em 'Superman', Gunn volta a colocar 'o dedo na ferida', mas agora criticando a atuação americana nos principais conflitos do mundo, como Israel x Palestina e Rússia x Ucrânia.

Em conversa com o diretor durante sua passagem pelo Rio de Janeiro, Gunn revelou que acredita ser impossível não falar de política, já que é algo inerente a própria vida.

"Por um lado, não pensei o filme como algo político, mas a verdade é que tudo na vida é política. Qualquer crença que se tenha é política. Mas acho que é um filme mais sobre filosofias. Por exemplo, o Superman e a Lois Lane acreditam no bem, só que enxergam o mundo de formas diferentes. O que é ser bom? Cada um vê isso de seu próprio jeito", disse o diretor.

Ele também explicou que esse viés político veio de uma reflexão de como seriam os conflitos do nosso mundo se o Superman estivesse por aqui.

Macaque in the trees
James Gunn veio ao Rio de Janeiro com o elenco para promover 'Superman' | Foto: Divulgação/ Warner

"A ideia veio da pergunta: 'como o mundo reagiria se o Superman existisse de verdade?'. Apesar do Universo DC não ser o nosso, eles são bem parecidos. Então, se o Superman estivesse lá, acho que haveria muitos conflitos com essas 'autoridades'. A gente sabe como o Superman é. Ele sempre vai enfrentar os valentões, ele sempre vai tentar salvar a todos, independentemente de crenças. E isso significa enfrentar governos repressores se for necessário. Então, sim, existem esses momentos políticos em alguns momentos", completou.

Outro grande destaque do filme é o uso da música tema clássica da década de 1970, que foi atualizada com a benção de John Williams. Para Gunn, isso foi incrível.

"Eu amo o tema original do 'Superman' de John Williams. E amo que pudemos brincar com isso. Nosso time pôde pegar trechos dessa música e usá-los de diferentes formas em diferentes cenas. Quando eu era criança, esse tema era 'A música tema'. Foi a primeira trilha cinematográfica pela qual me apaixonei. Foi o que me despertou o sentimento de dizer: 'Meu Deus! A música é a melhor parte dos filmes!'. Eu amei mais a trilha do que o filme em si", disse.

Outra carcterística clássica dos filmes de James Gunn é a playlist afiada. Aqui, apesar de haver músicas Pop, ele está bem mais contido que nos filmes dos 'Guardiões da Galáxia', por exemplo. E isso foi um desafio imposto pelo próprio James.

"Quis me desafiar para não fazer deste filme um 'Filme Musical', por assim dizer. Mas foi difícil, foi muito difícil! Cheguei a me sentir exposto, vulnerável, sabe?", brincou o diretor.

Por fim, ele contou o que mais gostou do Rio de Janeiro.

"Bom, essa não foi minha primeira vez no Brasil, mas foi minha primeira vinda ao Rio. A cidade é linda! O contraste dos prédios com a floresta é único. Mas o que mais gostei foi o Jardim Botânico. Eu sentei na grama e apareceram uns 30 macacos-prego. Eles ficaram lá brincando e se balançando. Aquilo me deixou tão feliz!", revelou.

Família

Também falamos com David Corenswet, o novo Superman, que disse ter formado uma nova família com o elenco e a produção do filme.

"Trabalhei por quase um ano e meio com a equipe mais incrível de Atlanta, com o melhor elenco do mundo sob o comando de James Gunn. A verdade é que sinto que formei uma segunda família. Nós, do elenco e equipe, trabalhamos muito unidos e com muito amor para trazer esse filme para vocês. Espero que isso possa ser sentido pelo público, esse nosso amor pelos filmes e pela vida", disse.

"Foi incrível! Tenho esperança de que possamos reunir esse time novamente para uma sequência em algum momento", concluiu David Corenswet.

 

CRÍTICA / FILME / SUPERMAN: Lex, o César de uma Roma trumpista

Nicholas Hoult repagina noções de vilania com seu Lex Lutor | Foto: Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Lex Luthor é rico. Tem tanto dinheiro quanto o Bruce Wayne lá de Gotham, cidade vizinha à sua Metrópolis, que ganhou respeito no mundo midiático por ter um jornal onde "aconteceu, virou manchete", e angariou os olhos do mundo por ter virado o lar do Superman. Toda e qualquer fronteira ao intelecto, aquelas que nenhuma IA transpõe, a mente de Lex ultrapassa, à força dos inventos de sua LexCorp. No roteiro (sinuoso, mas sólido) de James Gunn, até um universo paralelo compacto, com códigos da Física semelhantes aos nossos, esse bandido elegante bola. Seus neurônios transcendem tudo, menos a barreira do racismo.

O que está em jogo no atual regresso do super-herói mais famoso dos quadrinhos ao cinema, em 2025, em plena Era Trump, é o ódio que um magnata tem pelo que é diferente dele. Lex despreza o Homem de Aço por saber que ele vem de outro planeta. Ele é estrangeiro, logo, em sua dinâmica, impõe risco. Heróis como o Lanterna Verde Guy Gardner, o ferrabrás interpretado por Nathan Fillion com ironia, não fazem sua careca lustrosa coçar, porque são aqui da Terra, e ainda por cima, dos EUA. São de casa. Kal-El, não.

À luz de Lex, o César de uma Roma pós-moderna, Kal-El é um emissário das tribos bárbaras que vem conspurcar o pão e o circo de um Coliseu que não se exibe por meio de lutas, mas por invenções eletrônicas, toques de celular e exibicionismo nas redes sociais. Elas condenam o Super-Homem quando ele é acusado de descender de uma linhagem conquistadora de Krypton. A acusação vem de uma tradução forçada de línguas milenares. Um idioma como o daquele mundo morto equivale aos dialetos que se perdem em diásporas, nas quais a brutalidade segrega quem vem de longe.

O poder de Lex é o capitalismo: com dólares, ele alimenta intolerâncias. Nicholas Hoult, um talento dos infernos, sacou isso e transforma o mais famoso vilão das HQs - há tempos sem viço - num ser bestial, uma alegoria do ódio que expõe o atual zeitgeist da América.