Lançado há uns 15 dias, no sapatinho, em circuito brasileiro, cerca de um ano depois de sua passagem por Cannes, em disputa pela Palma de Ouro de 2025, "Levados Pelas Marés" ("Feng Liu Yi Dai", no original/ "Caught by the Tides" pelo mundo afora) segue firme e forte nas telas do Rio, ainda que numa sessão só por dia. Pode ser visto às 16h10, no Cinesystem Belas Artes, de Botafogo. O apelo de seu realizador - o chinês Jia Zhang-ke, de 55 anos - entre cinéfilos de todo o país é forte, sobretudo depois do documentário que o carioca Walter Salles dirigiu sobre ele e sua filmografia autoral, em 2014: "Um Homem de Fenyang".
Fundador do Pingyao Crouching Tiger Hidden Dragon International FilmFestival (PYIFF), que acontecerá de 24 a 30 de setembro, na China, Jia completa três décadas de carreia em 2025, comemorando os 30 anos de seu primeiro trabalho como cineasta: "Xiaoshan Going Home" (1995). Ganhador do Leão de Ouro de Veneza, em 2006, por "Em Busca da Vida", ele tem ainda uma prolífica atuação como produtor e lança neste fim de semana, um novo trabalho neste posto: "Heaven and Hell" ("Yi dao tian tang"), de Huang Chao-Liang. Em paralelo, deixa seu exercício mais recente como diretor correr mundo.
"Eu me esforço para que a China vislumbre o lugar em que podemos chegar no amanhã", disse Jia ao Correio da Manhã em sua passagem pela Berlinale com "Nadando Até o Mar se Tornar Azul" ("Swimming Out Until the Sea Turns Blue", de 2020), inédito em salas do Brasil.
Ali ele começou a alinhavar o processo de "Levados Pelas Marés", que lhe rendeu o Prêmio da Crítica na Mostra de São Paulo no ano passado. Seu roteiro acompanha a jornada emocional de Qiaoqiao (papel da atriz Zhao Tao, atual companheira de Jia) em busca de um amor perdido, ao passo que, ao largo de sua cruzada afetiva, sua nação muda vertiginosamente. Ao longo de duas décadas — de 2000 ao início dos anos 2020 —, Qiaoqiao e Bin vivem um amor intenso e frágil na cidade chinesa de Datong, que sofre de dificuldades financeiras. Repentinamente, Bin vai embora para tentar a sorte em um lugar maior. Algum tempo depois, Qiaoqiao parte em uma jornada para reencontrá-lo. Esse tráfego gera, na tela, um amálgama de ficção e registro documental de harmonia plena, construído por imagens de filmagens anteriores de Jia, feitas ao longo de 21 anos, desde o alvorecer do século XXI.
"Há tempos, desde que as câmeras digitais apareceram, eu coleciono recordações imagéticas do cotidiano e faço algo com elas, seja pequenos filmes, seja um arquivo de memórias afetivas que, algum dia, serão anexadas à minha dramaturgia", disse Jia ao Correio em Cannes. "O mundo que me interessa é o das conexões que nascem da exclusão. Tenho o olhar voltado para periferias do poder e da mídia onde as pessoas se juntam a fim de resistir à pobreza, à invisibilidade. Tento entender o afeto que nasce dessa união".
Seus curtas, em geral, ganham visibilidade na internet, ao alcance de toda a cinefilia, como foi o caso do convulsivo "The Hedonists" (2016). Já seus longas tiveram problemas de censura em sua pátria natal. "Um Toque De Pecado", ao qual Spielberg deu um prêmio de melhor roteiro quando presidiu o júri de Cannes, em 2013, sofreu boicotes do governo da China. Ainda assim, Jia não esmorece:
"Seja fato, seja fábula, toda narrativa que faço é um documento sobre a China e sobre o Tempo. Retrabalho na ficção situações que eu observo nas ruas. Se eu não tivesse essa verve documental, meus diálogos, nos roteiros que escrevo, teriam muita precariedade: eles são escritos a partir das vivências que eu observo".