Na briga para que seu filme mais recente (“Alpha”, exibido na disputa de Cannes), a francesa Julia Ducournau encontra um lugar seguro para sua joia mais preciosa no perímetro da língua portuguesa: “Titane” foi parar na Filmin.PT. No Brasil, quase cinco anos depois de sua polêmica travessia pelas telas, o longa-metragem pode ser visto na MUBI.
Revelada com o périplo de uma estudante de Veterinária acometida por um desejo súbito de comer carne humana, narrado em “Grave” (“Raw”, 2016), Ducournau, uma parisiense de 41 anos, enxerga o corpo como sendo um lugar de revelações e de transcendência, a julgar pelo processo revolucionário que suas protagonistas passam a partir de um gatilho de seus organismos. A jovem vegana que vira canibal passa a atacar gente por culpa de uma fome incontinente. Já em seu filme avassalador, “Titane”, uma mulher na casa dos 20 e tantos anos engravida após uma relação sexual sem preservativo. Mas seria difícil encontrar camisinhas que dessem conta de seu parceiro: um... carro.
Por cerca de nove meses, após uma transa em que latarias metálicas de agitam, Alexia (Agathe Rousselle, em lívida atuação) vai expelir um líquido que parece óleo diesel de sua vagina. Por vezes, a secreção é graxa. São imagens que, faladas, soam caricatas, mas que, filmadas com a elegância (e a visceralidade) de Julia, rendem ao cinema uma experiência inesquecível. Não por acaso, coube a ele a Palma de Ouro de 2021 no Festival de Cannes que teve Spike Lee como presidente do Júri. É a segunda vez na História que a láurea vai para uma realizadora, sendo a neozelandesa Jane Campion a vencedora anterior, laureada em 1993, por “O Piano”. Depois, em 2023, veio Justine Triet e “Anatomia de uma Queda”.
Lançado em terras nacionais via www.mubi.com, “Titane” investe nessa exortação da potência corporal, típica de Julia, mostrando a carcaça humana como um templo de afirmação do livre arbítrio, num estudo sobre identidades performáticas. Cannes premiou-a (graças ao júri presidido por Spike Lee), mas a Croisette dividiu-se num Fla x Flu tipo “Amei” x “Odiei” ao fim de sua projeção. San Sebastián viveu a mesma situação, há quatro anos. Houve gente saindo das sessões quando Alexia bate o próprio rosto contra uma pia, a fim de deformar seu nariz. Deformar-se é parte da reinvenção pela qual a personagem há de passar quando se assume, sem culpa, como serial killer, dando um ponto final à existência de homens que passam dos limites na aproximação a ela e dando um adeus a mulheres que não reagem a seus carinhos furiosos como ela espera. E ela mata usando um pau de cabelo como arma. Mas é a segunda transformação por que a moça passa. A primeira acontece em sua infância, quando um acidente rodoviário impõe a instalação de uma placa de titânio em sua cabeça. Ali ela vira ciborgue.
Ali vem um espírito cronenberguiano desta alegoria sobre a condição maquínica da civilização, nestes tempos em que somos, a cada dia mais, centauros de nossa tecnologia. Antes de Julia lançar essa fábula dark sobre o devir chassi em cada um de nós, a diretora pernambucana Renata Pinheiro já havia tratado do tema em seu vicejante “Carro Rei”, eleito o melhor filme de Gramado, em agosto de 2021.
Ambos têm parentela com “Crash: Estranhos Prazeres” (Prêmio do Júri em Cannes, em 1996), do já citado David Cronenberg. Lá, acidentes de carro excitavam pessoas marcadas por cicatrizes. Em “Titane”, Alexia, que também ostenta uma ferida cicatrizada na pele, só tem orgasmos com veículos de quatro rodas, levando consigo o fruto desse prazer. Fruto esse que vai se desenvolver numa assustadora aproximação da narrativa com os códigos do horror. O que dilui o tom sombrio – mas não o clima de bizarrice – é a relação que Alexia estabelece com um bombeiro (Vincent Lindon, em excepcional atuação) que enxerga nela a filha que perdeu. É o germe de um amor paterno que vai descambar para algo sem nome, surpreendente como cada fotograma desta aula de biologia existencialista.