Marieta Severo reinou nas bilheterias nacionais com 'Carlota Joaquina' | Foto: Divulgação
Era uma vez um país cujo cinema andava paralisado. Atravessava uma fase penosa, incapaz de produzir imagens de sua gente, em decorrência de uma artimanha presidencial que brecou o investimento na arte audiovisual, até que uma princesa chegou para salvar a pátria. A data em questão, 6 de janeiro de 1995, um Dia de Reis. Ali estreou "Carlota Joaquina", que voltará ao circuito em 14 de agosto, com cópia remasterizada em 4K, para comemorar os 30 anos de sua estreia e do resgate de nossa autoestima cinéfila.
Em meados dos noventa, a Embrafilme, empresa que assegurava a feitura de títulos nacionais para a tela grande, foi para as cucuias, por culpa de uma canetada do governo Fernando Collor. Com ela, o sonho de fazer do cinema uma atividade comercial sustentável, nesta pátria, parecia ter avinagrado. Aí, estreou o primeiro longa-metragem dirigido pela atriz Carla Camurati, que havia se lançado na realização antes, com o curta "A Mulher Fatal Encontra O Homem Ideal" (1987), e o público voltou... a esperança também.
Marieta Severo encarnava o papel título: a nobre espanhola que, casada com o monarca português Dom João VI, precisa zarpar para a América do Sul do século XIX a fim de assumir o reinado do lado de cá do Atlântico. O humor inusitado, traduzido na dobradinha de Marieta e Marco Nanini (no papel de um rei glutão, devorador de frango assado), fez aquele exercício artesanal de comédia, ancorado no cais da reconstituição histórica, virar um ímã de plateias. Vendeu 1.286.000 ingressos.
O marco zero da Retomada do cinema brasileiro
Marieta
Severo e Marco Nanini,
numa alquimia cômica perfeita, vivem a personagem-título e
D. João VI | Foto: Divulgação
Numa época em que era mais fácil encontrar um unicórnio pelas ruas do que ver um filme brasileiro em cartaz, o engenho de Camurati, produzido por ela e por Bianca de Felippes, fez nossa atividade cinematográfica renascer. Não por acaso, encara-se a aventura de Carlota pelos trópicos como o marco zero da chamada Retomada, que vai até 2010. Os 30 anos que se passaram desde esse feito serão comemorados agora, como o retorno da Corte Real às telas, em cópias restauradas digitalmente, com patrocínio da Petrobras. O relançamento vai se espalhar por dez capitais brasileiras.
'Trinta anos depois, eu assisto ao filme e ainda o acho lindo. O filme chegou ao público e a maior felicidade para mim é fila na porta' Bianca de Felippes | Foto: Reprodução Instagram
"A maior alegria para mim desse trabalho foi fazer um filme de que eu me orgulho até hoje", diz Bianca ao Correio da Manhã. "Trinta anos depois, eu assisto ao filme e ainda o acho lindo. O filme chegou ao público e a maior felicidade para mim é fila na porta. Estou animada com o relançamento, pois filme merece ser visto na tela grande, na sala escura".
De acordo com a apuração feita pelo professor Luiz Carlos Villalta para o artigo "Entre A História E A Ficção, Um 'Romance' Crítico Do Conhecimento Histórico", da "Revista USP", o custo de "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil" (segundo declarações antigas de Camurati) foi de R$ 673 mil. O valor, já para a época de sua produção, era uma cifra baixa, uma vez que a média de então era R$ 1,2 milhão.
Carla Camurati no set de filmagens de 'Carlota Joaquina' | Foto: Divulgação
A diretora assina o argumento em duo com Angus Mitchell e escreveu o roteiro com Melanie Dimantas, flertando com a liberdade no olhar para o passado. "O filme fala com leveza de um país erguido sobre privilégios, acordos de conveniência e relações de poder — temas que, infelizmente, ainda ecoam na nossa realidade", diz Camurati no material de imprensa da reestreia do longa, cuja direção de fotografia foi de Breno Silveira (1964-2022), realizador de "2 Filhos de Francisco" (2005).
Depois de "Carlota Joaquina" vieram cults nacionais em série, como "Céu de Estrelas" (1996), "Baile Perfumado" (1996), "Os Matadores" (1997), "O que é Isso, Companheiro?" (indicado ao Oscar em 1998) e "Central do Brasil" (Urso de Ouro de 1998). Com eles, cresceu a fé de quem ambicionava estudar Cinema na década de 1990, época em que Hsu Chien Hsin, hoje um dos mais prolíficos diretores do Rio de Janeiro, realizador de sucessos como "Desapega!" (2023) e "Flerte" (2014), começou na profissão.
'A gente ficou vários anos na UFF com uma tensão muito grande, pensando em para que estudar se não tem mais produção de cinema?' Hsu Chien Chin | Foto: Lorhan Toledo/Divulgação
"Quando o 'Carlota' foi lançado em 1995, não se produzia mais. Todo o universo dos cinemas migrou para comerciais e para a Globo e os que não conseguiram migrar foram trabalhar em outra área. Eu entrei na faculdade de Cinema da Universidade Federal Fluminense em 1990. A gente ficou vários anos na UFF com uma tensão muito grande, pensando: "para que estudar se não tem mais produção de audiovisual em relação a cinema?". Quando surgiu o filme da Carla, foi um alento para a gente. Foi um divisor de águas para a minha geração".
Hsu, que trabalhou com Bianca de Felippes em "Eduardo e Mônica" (2021), estará na primeira fila das novas projeções de "Carlota Joaquina", que pode ampliar o faturamento das redes de exibição no segundo semestre.
"O filme foi exibido aqui no Estação e foi um super sucesso", lembra a exibidora Adriana Rattes, diretora executiva do Grupo Estação. "Acho que 'Carlota' é, sem dúvida nenhuma, um grande marco, não só pelo filme em si, mas pela forma como a Carla e a Bianca lançaram-no. Elas colocaram o filme debaixo do braço e fizeram ele acontecer no Brasil todo. Ele pavimentou uma estrada, ao jogar uma luz sobre as possibilidades do cinema brasileiro naquele momento. É impressionante pensar que já passou tanto tempo e já teve tantas reviravoltas, tantas conquistas, tantos passos para trás e aí está o 'Carlota', para ajudar a contar essa história".
Historiadora, Cecilia Matos, professora do ensino médio, destaca a relevância da narrativa de Camurati sobretudo para quem está a caminho do Enem:
"'Carlota Joaquina' é um filme simbólico para pensar obras audiovisuais na aula de História. A obra de Carla Camurati, ícone da Retomada do cinema brasileiro, é uma fonte secundária sobre o período joanino, mas uma fonte primária sobre o início da década de 1990 no Brasil. A partir dessa relação entre os tempos, a mágica do filme se materializa na aula. Dom João, um algodão entre diamantes brutos, Inglaterra e França, aparece no filme como uma sátira de Portugal. A menina Ludmila Dayer é uma caricatura do eurocentrismo. Para olhares desavisados, o filme pode ser entendido como mais uma obra que transforma a História do Brasil em piada, mas, em sala, podemos provocar as turmas a pensarem o que essa história diz sobre os anos 1990, sobre as permanências e transformações na maneira de enxergar a colonização. É uma aula de conversa entre os tempos".
'Carlota Joaquina' representa um ato de coragem: com o cinema brasileiro paralisado, sem recursos para filmar, Carla resolve vencer o desafio e decide fazer um filme, que era uma comédia para público' Silvio Tendler | Foto: Divulgação
A reflexão da professora Cecilia é compartilhada pelo papa do documentário histórico no país, Silvio Tendler, diretor de "Anos JK" e "Jango":
"O longa-metragem 'Carlota Joaquina' representa um ato de coragem: com o cinema brasileiro paralisado, sem recursos para filmar, Carla resolve vencer o desafio e decide fazer um filme, que era uma comédia para público. Convida Marieta Severo, que encara o desafio, e, assim, nós saímos do marasmo que o (Des)Governo Collor havia nos projetado. Com ele, eu consegui rir, e num filme brasileiro. Naquele momento, foi o grande desafio de que não esquecerei".
Como Cecilia, Tendler também é educador e lecionou Cinema anos a fio na PUC-Rio, com a certeza de que produções brasileiras como "Carlota Joaquina" desafiam a hegemonia de Hollywood sobre nossas telas, a fim de levar representações de nosso povo ao écran. Por esse empenho, o esforço de Camurati ganhou fãs naquela época, como a escritora Mariza Gualano, que citou o longa sobre intrigas reais em seus livros.
"Para uma apaixonada pelo cinema brasileiro como eu, o lançamento de 'Carlota Joaquina, A Princesa do Brasil' foi recebido com muito entusiasmo. Foi um sopro de esperança no cenário difícil em que se encontrava nossa cinematografia. O impacto foi tão marcante que não resisti: precisei incluir nas minhas antologias algumas das falas mais divertidas, ousadas e provocadoras desse filme que, para mim, reacendeu a chama da nossa tela com brilho e irreverência", conta a autora de "Para Fellini, Com Amor". "Ao embarcar de volta para Portugal, Marieta Severo dispara a icônica frase "Desta terra eu não quero nem o pó!", que consta da minha primeira antologia de frases de cinema, 'Ouvir Estrelas'. O livro seguinte, 'Royale com Queijo', de citações gastronômicas de filmes, registrou a observação do ator Brent Hieatt sobre a gula do Imperador e disse 'Dom João morreu tomando sopa de galinha'. E o meu almanaque "Pérolas Brasileiras", de frases e diálogos do cinema nacional, não deixou de fora o fascínio da princesa por sapatos e lembrou das seguintes palavras debochadas, 'Agora tenho para todos os dias do ano! Poderei gastá-los tranquilamente pelas ruas horríveis do Brasil'".
Usina viva de blockbusters, como "De Pernas Pro Ar" (2010) e "Meu Nome Não É Johnny" (2008), a produtora Mariza Leão Carlota explica que "Carlota Joaquina" marca uma virada bem-sucedida na conquista do público: "Herdeiro da tradição da comédia, o filme se impõe com inteligência e criatividade, e Marieta esbanja talento".
Esse critério cômico que Mariza Leão aponta é trabalhado sob um viés raramente explorado em nossa filmografia, como explica o pesquisador João Carlos Rodrigues, autor do seminal "O Negro Brasileiro E O Cinema": "Nas escolas, por muito tempo, até antes da ditadura, a figura de Carlota Joaquina era abordada de forma caricata, cercada de antipatia. O filme da Carla, muito divertida, mudou esse retrato pelas vias da comédia histórica, um filão pouco abordado aqui".
Analista dos veios estéticos do Brasil na telona desde a década de 1980, o crítico Ricardo Cota vai estar na fila das salas em que o périplo de Carlota reestrear:
"'Carlota Joaquina' reacendeu a brasa adormecida do cinema brasileiro após o extermínio da Embrafilme no governo Collor. Não foi um filme qualquer, mas, sim, uma releitura humorada, feminina, da História do Brasil. Um filme solar, inspirado pelo humor que atravessa as barreiras do tempo. Poder revê-lo hoje, com minha filha, é uma forma de mostrar-lhe a História do Brasil pelos caminhos da informação e do entretenimento", reflete Cota. "'Carlota Joaquina' é dos filmes que rejuvenescem com o tempo".
Distribuidor responsável por desenhar a trilha comercial de fenômenos como "Eu Te Amo" (1981) e "Tropa de Elite 2" (2010), Marco Aurélio Marcondes lembra que a celebração dos feitos de Camurati podem resgatar um outro êxito de nossa arte de meados da década de 1990, que foi indicado ao Oscar.
"Considero que 'Carlota Joaquina', da Carla Camurati, teve um papel importante para a chamada Retomada, mas lembro que 'O Quatrilho', de Fábio Barreto fez, no memo período, um público de 1.117.154 (pagantes), com informações que prestei ao Sindicato dos Distribuidores. Hoje estes números são coisa rara para o nosso cinema".
Essa ave rara que "Carlota Joaquina" é fez nosso cinema renascer como Fênix. Que as novas gerações se contagiem com seu humor e com a atuação iluminada de Marieta.