Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Dag Johan Haugerud: 'Se você crê que a vida será um filme, vai se frustrar'

Dag Johan Haugerud com o Urso de Ouro conquistado por 'Dreams (Sex Love)' | Foto: Berlinale.de

Temos o Urso de Ouro de 2025 entre nós: "Dreams (Sex Love)", vindo da Escandinávia, estreia nesta quinta-feira (26) no circuito exibidor brasileiro. É hora de conferir o (comovente) atestado do apogeu de Dag Johan Haugerud como artista na reflexão sobre o quanto a palavra libera nossos demônios.

O filme mais recente desse escritor e cineasta nascido em 30 de dezembro de 1964, em Eidsberg, na Noruega, entra em circuito nacional depois de assegurar a seu país um dos prêmios mais cobiçados da indústria cinematográfica, atribuído a ele, na Berlinale, em fevereiro, por um júri presidido pelo diretor americano Todd Haynes (de "Carol").

Vizinha da Suécia de Bergman e da Dinamarca de Lars von Trier, sua pátria gerou vozes autorais como Joachim Trier ("A Pior Pessoa Do Mundo"), Erik Poppe ("Utoya 22 de Julho"), Maria Sodahl ("Ficaremos Bem"), Kare Bergstrom ("O Lago dos Mortos") e Hans Petter Moland (de "O Cidadão do Ano"), que hoje é parceiro habitual de Liam Neeson por trás das câmeras, filmando em Inglês.

"Embora a Noruega seja um país de mente aberta, enfrentamos questões em nosso dia a dia, ligadas à aceitação a angústias comportamentais, que são desafiadoras", disse Haugerud em terras berlinenses ao ganhar o troféu mais disputado da maratona cinéfila germânica. Continua nas páginas seguintes

 

'A fala é parte da corporalidade de um ator. É gesto'

Odesempenho de Ella Øverbye no papel da estudante e aspirante a Clarice Lipector chamada Johanne ajudou um bocado na construção do fã-clube que "Dreams (Sex Love)" somou ao longo dos últimos quatro meses, desde a Berlinale. A produção é parte de um projeto que Dag Johan Haugerud idealizou a fim de entender modos de amar, de gozar e de temer o querer. Ele integra uma trilogia antecedida por "Sex" e "Love", ambos de 2024, já lançados por aqui salas e hoje presentes no Reserva Imovision. Antes, sua notabilidade vinha pelo filme "Nossas Crianças" (2019). Agora, ele assume um lugar de relevo na indústria audiovisual de uma nação mais conhecida pela diva bergmaniana Liv Ullmann. Seu país fez bonito também em Cannes, em maio, ao ganhar o Grande Prêmio do Júri com "Sentimental Value", do já citado Joachim Trier.

Na trama de "Dreams (Sex Love)", Dag faz uma ode à literatura ao narrar o processo de escrita de uma adolescente (papel de Ella) no registro (em prosa) de suas fantasias sentimentais por uma mulher mais velha, que jamais a enxerga com desejo. Confira a crítica na página ao lado.

"Se a partir do exercício literário, uma pessoa for capaz de reescrever quem é, ela pode criar uma representação melhorada de si melhor", disse Haugerud ao Correio da Manhã num papo via Zoom que desfila por formas de fazer da linguagem do cinema um espaço geográfico para o querer.

Que responsabilidade a decisão de fazer um filme de amor, nos tempos de hoje, impõe?

Dag Johan Haugerud: Não sinto que se deva falar em responsabilidade quando se trata de arte, mas o amor é sempre importante, sobretudo quando a mirada em questão não é romantismo e, sim, cuidado. O cinema americano criou histórias amorosas, ao longo da História, que me deixam sentimental, mas abrem uma reflexão acerca das projeções que fazemos. Se você crê que a vida será um filme, vai se frustrar. O que os filmes não mostram não é paixão, é parceria.

Que Noruega está refletida em "Dreams (Sex Love)"?

Tento refletir a sociedade escandinava por meio dos diálogos que filmo, a partir da percepção de que, na região de onde venho, muita coisa é resolvida na conversa, na fala. Falar é parte da vida, do cotidiano.

O senhor não teme a decisão de fazer da palavra o lastro da sua narrativa, numa arte que se escora sobre a imagem, o que é um ato de coragem artística. Mas o que existe de cinemático na fala, no verbo?

Certa vez eu conheci Terence Davies (cineasta inglês morto em 2023, que foi cultuado por "Vozes Distantes", ganhador do Leopardo de Ouro do Festival de Locarno de 1988) e tivemos uma conversa sobre esse lugar da palavra nas telas. Lembro de ouvi-lo falar sobre essa contingência de o cinema ter que ser, essencialmente, imagens em movimento. Tal conversa me remonta a uma vivência do discurso como uma expressão do corpo. Logo, ela é ação. A fala é parte da corporalidade de um ator. É gesto. Essa dimensão física é o que eu exploro nos filmes que faço. A parceria que travo com a fotógrafa Cecilie Semec é uma busca por uma mise-en-scène que nasce do falar, na troca entre os personagens. Filmar diálogos longos, sem cair no tédio, é tarefa árdua. A gente experimenta e encontra soluções.

Como é reproduzir a coloquialidade da juventude de hoje em "Dreams (Sex Love)"?

Para te responder isso, antes de tudo eu preciso fazer uma pergunta a você e ao seu público leitor: você já foi adolescente? Se você responder que sim - e, de fato, a adolescência é uma passagem comum a todos nós -, vai perceber que a questão central para lidar com ela é saber lembrar. Minhas memórias de meu primeiro amor e da minha juventude estão comigo. De uma certa forma, esse filme é sobre mim, também. Como eu tenho uma protagonista que reflete como são as jovens de hoje, eu precisei de uma consultoria para que o jeito de falar dela não soasse artificial e não destoasse da contemporaneidade.

Nesse esforço de não destoar do Presente, de que maneira a sua dramaturgia, classificada como queer, lida com a heteronormatividade?

Eu entendo a associação do meu cinema com o imaginário queer. O tema está lá, mas rótulos podem ser limitadores se eles passarem a indicar que faço filmes gays para os héteros. Não faço. A heteronormatividade tem muito a aprender com a comunidade gay.

Na representatividade da Noruega contemporânea, como a trilogia reflete o atual estado do cinema em seu país e como a sua vitória afeta (positivamente) essa indústria?

O cinema que fazemos hoje tornou-se forte nos últimos dez anos por conta de políticas públicas tomadas há uma década e que, hoje, estão reverberando, ainda que eu não saiba o que há de acontecer nos dez anos que teremos pela frente. Fiz a trilogia com cerca de 5 milhões de euros. Parte do dinheiro veio de uma plataforma de streaming (Viaplay), que viu o projeto como se fosse uma série, e parte veio do governo.

Desde Berlim, parte da crítica internacional faz analogia entre seus "Dreams", "Sex" e "Love" e a "Trilogia das Cores" de Krzysztof Kieslowski (1941-1996), feita nos anos 1990. Em que grau o senhor se relaciona com essa referência?

Eu vi os três filmes na época, gostei muito de "A Igualdade É Branca" e de "A Fraternidade É Vermelha", mas não gostei de "A Liberdade É Azul". Não gostei a um ponto que aquele filme me fez parar de escrever profissionalmente sobre cinema em jornais. Gosto do que Kieslowski fez no "Decálogo" e gosto de "A Dupla Vida De Véronique". Se eu tiver que te falar de influências, citaria Éric Rohmer e Jacques Demy, além do cinema americano dos anos 1970. Vi "Kramer vs. Kramer" ainda jovem, e me marcou.

Que novos horizontes profissionais o senhor tem pela frente?

Termino agora um novo romance, chamado "Pastoral Care", e estou trabalhando num novo roteiro, que se estende por dois filmes, com duas atrizes diferentes. Eu gostei do formato que testei na trilogia, de filmes que se conversam, e quero testar esse dispositivo de novo.

CRÍTICA / FILME / DREAMS (SEX LOVE): Amar não cabe em planilhas

Dreams (Sex Love) | Foto: Agnete Brun/Divulgação

Um café é um gesto de virada definitivo em "Dreams (Sex Love)", capaz de alterar o curso de uma nau afetiva sem a necessidade de ressaca ou onda brava, uma vez que o cinema de Dag Johan Haugerud conta com o apoio da palavra para compreender a arrebentação. Referendado por um projeto estético de entendimento dos modos de amar, de ter sexo e de saber perder numa contemporaneidade que se diz (e se pretende) fluída, o filme ganhador do Urso de Ouro de 2025 (no original "Drømmer") esmiúça o papel patrimonial da memória sentimental no curso de formação (e de amadurecimento) de uma subjetividade. Dá à literatura papel fulcral no inventário memorial do pertencimento e da construção da identidade por entender que a imaginação é o músculo que movimentas as recordações, na diástole e na sístole da lembrança nossa de cada dia.

Na genealogia do audiovisual, segue o lastro deixado por "O Raio Verde" (1986), que valeu o Leão de Ouro ao francês Éric Rohmer (1920-2010), não só pela reverência à expressão literária, mas por entender que frase é ação, verbo é reação, conversa é cinemática, saliva é vetor. Não por acaso, Dag é apelidado de o Rohmer escandinavo desde "Barn" (2019), quando ganhou notoriedade.

Em 2024, ele se dedicou a falar das angústias amorosas de gerações alguns degraus abaixo da que pertence (nascido em 1964), incluindo as novíssimas, sempre sob uma perspectiva queer, com foco na aceitação das pulsões e na catarse das inquietudes por meio da fala. Começou com "Sex", premiado pelo Júri Ecuménico de Berlim, e passou para "Love", que disputou prémios oficiais em Veneza. Ambos estão na plataforma Reserva Imovision, que lança nesta quinta a parte três da trilogia, que assume como protagonista uma estudante de 17 anos, Johanne (Ella Øverbye, em impecável atuação). Ela se apaixona perdidamente por uma de suas instrutoras (vivida por Selome Emnetu), que tem nome quase igual ao seu, Johanna.

Numa tentativa de preservar essa primeira paixão não correspondida, ela coloca as suas impressões sobre o que sente no papel com uma honestidade crua, amparada por um talento singular para a autoficção. Manda os advérbios à luta e põe os adjetivos pra jogo, a fim de traduzir o que se passa em seu miocárdio. Na construção narrativa de sujeitos e predicados, a jovem é uma escritora de vigor. Quando a mãe, Kristin (Ane Dahl Torp), e a avó, a serena Karin (Anne Marit Jacobsen, em magnética interpretação), descobrem sua redação (já numa forma de original de livro, e não de diário), o choque inicial com as descrições íntimas dá lugar à admiração pelo mérito da menina com o vernáculo. As duas mulheres mais velhas - que sempre tiveram uma sólida cumplicidade na dinâmica mãe filha - começam a refletir sobre as suas próprias vivências amorosas, os prazeres e as oportunidades perdidas. Mais profundo ainda do que isso: põe em fricção aqueles desabafos que estavam entalados, mesmo aqueles ligados a situações bobas, entre as quais uma matinê de "Flashdance" (1983), com Jennifer Beals, lá na década de 1980.

A cada no parágrafo de Johanne, elas são lembradas da sensação avassaladora do despertar da primavera. A avó de Johanne, uma poeta muito consagrada, sente orgulho e desconforto com o talento natural da neta, não por inveja, mas por saber, na pele, o fardo que a arte da palavra impõe, em seu júbilo e em sua entrega.

Essas mulheres formam uma ciranda parental que a fotografia de Cecilie Semec enquadra com firmeza cirúrgica, emoldurando-a num colorido sempre bem temperado, sem excessos, afinado com a proposta investigativa da realização. (R.F.)