Banido da História por uma luta (urgente e corrente) antissexista, o "Cala a boca, Magda!", há tempos amalgamado ao sucesso de Marisa Orth na TV, cede a vez a um lugar de fala, de escuta e de ação na CineOP. A Mostra de Cinema de Ouro Preto inaugura sua 20ª edição nesta quarta-feira (25) promovendo uma homenagem à atriz paulista que é signo de gargalhada, num convite a uma revisão de seu legado. O evento vai até o dia 30 nas Gerais, com programação gratuita, parte presencial e parte online, além de tributos à educadora Maria Angélica Santos e ao professor João Luiz Vieira.
Na quinta, ali pelas 11h30, Marisa e Anna Muylaret, que a dirigiu em "Durval Discos" (2002), juntam-se para fazer o colóquio "O Riso das Medusas", num papo antenado com a temática O Humor das Mulheres no Cinema Brasileiro. No próprio dia 26/6, às 19h30, a Praça Tiradentes exibe curtas imperdíveis da programação do festival como "A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal", de Carla Camurati; "A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti", da já citada Muylaert; e "A Má Criada", de Sung Sfai. Dois cults da estrela homenageada deste ano passam por Minas: "Doces Poderes" (1997), de Lúcia Murat, e "Não Quero Falar Sobre Isso Agora" (1991), de Mauro Farias, que lhe rendeu o troféu Kikito, em Gramado, 34 anos atrás. Ao mesmo tempo, no streaming (no Globoplay e na Prime Video da Amazon), a figura de maior popularidade do rol de tipos criados por Marisa, Magda, ganha ribalta com a entrada de "Sai de Baixo: O Filme" (2019) em plataformas digitais. A direção é de Cris D'Amato.
Cheio de viço em duas frentes técnicas, a direção de arte (de Mário Monteiro) e os figurinos (de Sônia Soares), "Sai de Baixo: O filme" combina despretensão e competência artesanal num experimento de "cinevisão". As aspas se referem a longas-metragens decalcados de êxitos da televisão, no caso, o humorístico que virou febre na década de 1990. Essa revisão da fórmula testada pela Globo no passado tem um potencial de graça de assaltar o fôlego de quem se entregar, sem culpa, à diversão. Há algo mais na transposição do programa dominical que, de 1996 a 2002, recauchutou a fórmula de comédias sobre famílias encenadas em palcos, em uma estrutura de show de riso. Esse algo mais vem de uma marca (com traços autorais) de uma campeã de bilheteria, a já citada Cris D'Amato. Respeitada por exibidores pela franquia "SOS - Mulheres ao Mar" (2014-15), ela ainda não é reconhecida pela crítica (e pela própria indústria) com o respeito merecido pelas vastas proficiências estéticas que tem na construção de uma poética particular. Estamos diante de uma diretora que construiu uma obra sintonizada com o pleito do empoderamento feminino, sempre com heroínas que fogem das amarras do sexismo. Não por acaso, a CineOP festeja sua filmografia ao projetar seu "Linda de Morrer" (2015), com Glória Pires, no sábado, às 18h30. Aliás, ela volta ao circuito até dezembro com "Silvio Santos Vem Aí", tendo Leandro Hassum à frente do Carnê do Baú.
A peleja antimachista de Cris se faz notar na transformação que ela promove na figura de Magda, vivida por uma Marisa Orth no ápice do carisma, que não aceita mais o "Cala a boca!" de seu marido, Caco Antibes. Esse personagem foi objeto de adoração no Plim-Plim graças à inteligência cênica de Falabella. Este se reafirma no filme de Cris, quebrando o coco sem arrebentar a sapucaia, fazendo uma combinação de David Niven com Zé Trindade.
É de Falabella (autor do roteiro, com a colaboração do olhar humanista de Sylvio Gonçalves) que vem o segundo toque de personalidade de "Sai de Baixo: O Filme": o espírito de chanchada. É uma chanchada com um padrão anos 1950, à la Lulu de Barros ("O Negócio Foi Assim") e Victor Lima ("Massagista de Madame"), com que os quiprocós da trama se sucedem. É uma linha narrativa que cresce em harmonia com a energia de levante feminino que Cris injeta em seus planos, também na pele da laqueada matriarca do Arouche, Cassandra (Aracy Balabanian, motor das tiradas autorreferenciais do longa).
Produzido por Daniel Filho, o enredo é Oscarito na veia: saído da prisão, Caco aceita levar uma mala de joias em uma excursão da agência Vavátur até Foz do Iguaçu. Magda vai junto, o que gera uma confusão entre as valises. Enquanto isso, o criminoso Banqueta (Lúcio Mauro Filho, com ares de José Lewgoy em sua vilania marota) tem conta a acertar com Caco nessa viagem, assim como sua irmã gêmea, Angelita. Na tela, a jornada é um mero gancho pruma sucessão de gags, incluindo uma tiração de sarro com "Game of Thrones".
Como toda boa chanchada, o longa traz uma tônica de crônica de costumes, focada na falência da classe média, no apego a uma tradição que depende de dinheiro para ficar de pé. Entre um oceano de piadas, bem editadas, na montagem de Tainá Diniz e Eduardo Hartung, temos um estudo sociológico sobre a inversão da pirâmide econômica brasileira, com a emergência dos grupos antes tratados como invisíveis e que, agora, com o consumo, ganham subjetividade no discurso da representação da arte. É o caso de Ribamar (papel antológico de Tom Cavalcante), porteiro que, ao ganhar um apartamento próprio, passa a hospedar seus patrões do passado.
Serelepe em suas provocações ao politicamente correto, "Sai de Baixo" passa indolor pelas retinas, mas bate, com discrição, em mazelas morais do país. Ele ainda depura a química entre seus intérpretes, com uma apoteose para Falabella, que em suas polivalentes atividades, por vezes, concentra no teatro um talento como ator que oxigena o cinema nacional, hoje afogado no naturalismo.