Diante da boa acolhida a "Extermínio: A Evolução" ("28 Years Later") no feriadão que passou e do êxito mundial de "Pecadores" ("Sinners"), de Ryan Coogler, não restam dúvidas de que a alta do terror não rende apenas experiências estéticas autorais, mas, também, gera fortunas ao circuito. Não é à toa que em outubro, a Blumhouse, do produtor Jason Blum, vai aproveitar as semanas precedentes ao Dia das Bruxas (31/10) para badalar a estreia de "O Telefone Preto 2" ("Black Phone 2") ciente de estar fazendo um bom negócio. O primeiro, hoje pulsante na grade da Prime Video, da Amazon, rendeu uma baba. A premissa da parte dois já arrepia a espinha: "Morto é só uma palavra".
Vitaminado por uma receita internacional de US$ 161,4 milhões, "O Telefone Preto" ("The Black Phone") original, de 2022, uma produção de cerca de US$ 18 milhões, baseada em conto homônimo de Joe Hill (filho de Stephen King), é carregada pela elegância de um ator no apogeu de suas potências criativas: Ethan Green Hawke. Ele é alma desse aterrorizante (é realmente de fincar a unha nas poltronas do cinema!) estudo sobre o desamparo. Sua premissa lembra "M, O Vampiro de Dusseldorf" (1931), de Fritz Lang, apesar do clima (aparente) de "Stranger Things". Cabe a Hawke (dublado por Hércules Franco) ser o infanticida que assombra uma América suburbana, na Carolina do Norte, criando um dos vilões mais temerosos, ainda que mais humanizados, de uma era na qual tem sido cada vez mais difícil para a indústria cinematográfica emplacar personagens que durem para além dos créditos finais. A maneira como ele atua com máscaras, num estudo da plasticidade facial para o sombrio e para a aparente fragilidade, reporta-se diretamente à gênese da tragédia.
É um procedimento de sutilezas que só um ator com sua quilometragem poderia oferecer ao realizador Scott Derrickson. Foi Scott que transportou o terror ao terreno do realismo com o estonteante "O Exorcismo de Emily Rose", em 2005, permanecendo nesse registro em "A Entidade" (2012) e "Livrai-nos do Mal" (2014), até se arriscar entre os super-heróis, com "Doutor Estranho", um blockbuster marvete de 2016. De volta ao solo onde é expert, ele faz seu melhor filme e testa tudo o que Hawke tem. E ele tem muito.
Transportado para o Velho Oeste nos sets de "Estranha Forma de Vida", um western LGBTQIA de Pedro Almodóvar, atualmente na grade da MUBI, Hawke soma 98 produções em seu currículo como ator, desde sua estreia, em 1985, no longa "Viagem ao Mundo dos Sonhos". Foram "Sociedade dos Poetas Mortos" (1989) e, em seguida, "Caninos Branco" (1991) que demonstraram seu vigor cênico. Mais adiante, a parceria com Richard Linklater, em "Antes do Amanhecer" (Melhor Direção na Berlinale de 1995), atestou a aversão dele pelo rótulo de galã e seu interesse por ousadia, em múltiplas vias. Fez teatro dos bons desde então, vide sua participação em "The Coast of Utopia", de Tom Stoppard, na Broadway, em 2006. Disse "Sim!" pra Marvel e encarnou a Maldade na minissérie "Cavaleiro da Lua", enfrentando Oscar Isaac, em episódios que hoje estão na grade do Disney . Dirigiu dez títulos entre curtas, clipes, .docs e o ótimo longa "Blaze", premiado em Sundance 2018. Nesse meio tempo, indicado a quatro Oscars, como coadjuvante e roteirista, estrelou títulos de grifes autorais como Alfonso Cuarón ("Grandes Esperanças"), Rebecca Miller ("Maggie Tem Um Plano"), Hirokazku Koreeda ("A Verdade") e Abel Ferrara ("Zeros e Uns"). Antoine Fuqua (de "O Dia Treinamento") e Linklater sempre têm um papel pra ele. Em fevereiro, os dois passaram pela Berlinale, em disputa pelo Urso de Ouro com "Blue Moon". Não bastasse isso, Ethan escreveu livro ("Código de um Cavaleiro") e HQ ("Indeh - Uma História das Guerras Apache").
Dessa miscelânea de projetos, Hawke leva a "O Telefone Preto" a habilidade de garantir um abismo afetivo a personagens que parecem apenas cascas. Por trás de Grabber (o Agarrador), o criminoso que sequestra crianças, aprisiona-as em um porão e as conduz até a morte numa gincana de portas, há uma série de sentimentos: da insegurança ao descontrole. E o astro de 54 anos os potencializa apenas portando uma máscara, sob a luz sem saturação (sazonalmente aberta a um chiaroscuro) do fotógrafo Brett Jutkiewicz. O que amplia as camadas do monstro é o fato de a atual vítima, Finney (Mason Thames), conseguir se comunicar com mortos em seu claustro, num toque sobrenatural que desafia a secura realista de Derrickson... e os nossos nervos, cada um deles.