É sempre uma surpresa conferir produções francesas no molde do chamado family film (trama para todas as idades) que se tornam blockbuster, como é o caso de "A Fanfarra" ("Em Fanfare", 2024) que estreia por aqui neste fim de semana, depois de vender 2,6 milhões de ingressos em sua pátria de origem. Exibido por aqui no Festival Varilux do ano passado, essa comédia de eco dramático tem dois atores que hoje explodem no gosto popular de sua pátria - Pierre Lottin e Benjamin Lavernhe -, mas ainda não têm, por lá, o apelo que outras celebridades (Omar Sy, Virginie Efira, Dany Boon) possuem.
No entanto, na França, um tema de tom afetivo coberto no envelope da leveza emplaca bem no gosto daquela cinefilia, como se vê atualmente no êxito de "Partir Un Jour", musical de Amélie Bonnin que abriu o Festival de Cannes, em 13 de maio. No sapatinho, em um mês, a fita, mesmo sem estrelas famosas, já vendeu 610 pagantes. O caso da trama que chega por aqui nesta quinta conta com a força de um realizador que radiografa com carinho as mazelas existenciais de sua nação.
Ator prolífico, com múltiplas aparições nas telonas desde os anos 1990, o hoje também diretor Emmanuel Courcol deu à cidade de Cannes um alento, em plena pandemia, quando o balneário teve de improvisar um formato pocket de seu festival anual (o mais respeitado do mundo), a fim de demarcar a peleja do cinema para manter suas salas abertas sob o turbilhão da covid-19.
Na ocasião, outubro de 2020, ele aceitou exibir o belo "A Noite do Triunfo" ("Un Triomphe") no Palais des Festivals, para uma audiência mascarada, no empenho de usar a arte como um instrumento de resistência. Dois dias depois da sessão, Emmanuel Macron "fechou" o país, decretando um novo (e severíssimo) lockdown.
Antes de o confinamento entrar em vigência, a recordação dos esforços do cineasta em celebrar a luta de personagens carentes de uma segunda chance valeram a ele o respeito do evento comandado por Thierry Frémaux e o carinho de sua pátria. Não por acaso, ele voltou a Cannes, em 2024, para exibir um exercício (autoral) novo: "A Fanfarra", que estreia agora no Rio de Janeiro. Ganhou uma vitrine paralela, fora de concurso, mas obteve aplauso e boas críticas, além de ser convidado para o Festival de San Sebastián. Da Espanha saiu com o troféu Cidade de Donostia, mimo resultante de uma votação de júri popular da mostra Perlak. Era já um indício de que possuía uma narrativa popular nas mãos. Esse indicativo confirmou-se na prática quando a longa-metragem entrou em cartaz em sua nação e virou coqueluche.
"Não sou especialista, mas posso ver que a produção francesa está se recuperando da melhor forma possível em um mercado que foi profundamente alterado pela pandemia", disse Courcol ao Correio da Manhã, via email, enquanto preparava "A Fanfarra". Acredito que, se o cinema quiser sobreviver, ele deve se forçar a oferecer ao público histórias generosas e inteligentes que falem a um público amplo. Acredito em um cinema de autor que seja popular e exigente, que evite o narcisismo, a autossatisfação e a autoindulgência".
Transformado em realizador com "Cessez-le-feu" (2016), ele estabeleceu seu projeto estético nas raias da dramédia, com atenção voltada para personagens catalizadores de reações dos satélites que os cercam. Ou seja: seu cinema fala de pessoas notabilizadas por destrezas que contagiam figuras de classe sociais mais desfavorecidas de soldo a agir em prol de mudanças em seu habitat. Foi assim com o ator e instrutor de teatro carcerário interpretado por Kad Merad em "A Noite do Triunfo". É assim com o regente interpretado (nas raias do esplendor) por Benjamin Lavernhe em "A Fanfarra". O carisma dele injeta viço a situações de fragilidade (física e mental) do maestro que interpreta, Thibault. Astro em ascensão, premiado em San Sebastián por "Quando Chega o Outono", de François Ozon, Pierre Lottin também ilumina a cena de Courcol, numa condição de coprotagonista.
O que vemos é um ensejo de bromance, onde o prefixo bro pode ser tomado de forma literal, uma vez que se trata da formação do amor entre irmãos. Essa perspectiva afetiva se deleita no requinte sob a delicada luz construída pela direção de fotografia de Maxence Lemonnier, num acabamento técnico acima da média para produções francófonas mais comerciais.
As confusões que regem a trama, num misto de riso e dor, começam no momento em que Thibaut (Lavernhe, impecável), no auge do sucesso em salas de concerto da Europa, recebe o diagnóstico de leucemia. Na luta contra a doença, ele descobre que foi adotado quando era bebé e não pode contar com a medula da irmã (adotiva), pois existe uma incompatibilidade de DNA. A solução para sua vida aparece quando é informado de que tem um irmão biológico, o assistente de cozinha Jimmy (Lottin), que gasta o seu tempo vago a ensaiar por um conjunto formado por instrumentistas amadores.
A hipótese de que Jimmy possa ser um doador instiga Thibaut e o leva a buscar uma conexão fraterna. Existe, contudo, uma exigência por parte de seu maninho recém-descoberto: em troca da doação, o músico deve ensaiar o grupo de Jimmy numa releitura do "Bolero" de Ravel. A demanda é simples. Parece, pelo menos. No entanto, existem meandros sociais em jogo ali. Além de meandros ligados a um sentimento de exclusão por parte daqueles e daquelas aspirantes a artistas.
"É um filme sobre determinismo social e o choque entre a 'grande música', a clássica, e o mundo das bandas musicais em uma pequena cidade de classe trabalhadora no norte da França, por meio do encontro de dois irmãos com destinos muito diferentes", diz Courcol.
Deslumbrado pela pujança de Thibaut, assegurada pela graciosidade cênica de Lavernhe, o olhar de Courcol nem sempre se atenta às gasturas sentimentais de seu coro de coadjuvantes, com o erro de resvalar em pontuais caricaturas na busca pela gargalhada. Apesar disso, trata com sabedoria a angústia de dois irmãos, lotados em extremos opostos da pirâmide financeira francesa, para alcançar harmonia. Fora isso, seu desfecho apoteótico atenua os deslizes pontuais.