Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Memory Box' celebra a liberdade e a maternidade

Viver o Líbano dos anos 1980 entre tiros, bombas, documentos averiguados e baladas roqueiras ensinou a Maia (Rim Turkhi) que saber esquecer pode ser uma arte em 'Memory Box' | Foto: Divulgação

Vai ter celebração para o Líbano no 78º Festival de Locarno (6 a 16 de agosto), na Suíça, a partir de um tributo para a Abbout Productions, sediada em Beirute e comandada pelo dupla Myriam Sassine e Georges Schoucair. O duo de produtores vai receber o Prêmio Honorário Raimondo Rezzonico em 7 de agosto. Eles conduziram uma série de aclamados longas-metragens sobre a realidade árabe e sobre a vida cultural libanesa. O maior êxito deles é o comovente "Memory Box", de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige. Indicada ak Urso de Ouro na Berlinale de 2021, a produção ganha projeção de gala no evento.

"Myriam e Georges lançaram muitos novos talentos, ajudando a dar uma nova cara ao Líbano, permitindo que aquele país atingisse todo seu potencial no audiovisual, oferecendo um retrato complexo de uma nação, que vai muito além das trivializações da violência da guerra", diz Giona A. Nazzaro, diretor artístico de Locarno há cinco anos.

Avessa a censuras e vetos políticos, a Abbout Productions tem sustentado uma rede de artistas e cineastas libaneses, além de artistas de outras nações árabes, que, apesar de opressões, lutam para fazer filmes independentes na região. A escolha de "Memory Box" para ilustrar a filmografia dessa produtora assegura a Locarno um filme memorável.

Viver o Líbano dos anos 1980 à flor da pele - entre tiros, bombas, documentos averiguados e baladas roqueiras - ensinou a Maia (Rim Turkhi), a protagonista de "Memory Box", que saber esquecer pode ser uma arte quando as cicatrizes que carregamos transcendem o nosso corpo e se remetem à noção ideia de território. O drama de uma mulher que não consegue mais se esconder de si mesmo é um estudo sobre o esquecimento como uma bandeira branca a ser flamulada no combate com nossos fantasmas mais íntimos. A Maia que ela foi lá atrás, vivida por Manal Issa numa representação de uma adolescência febril, escolhia tudo pelo desejo. A Maia de agora põe a razão acima das satisfações mais urgentes, preservando sua filha Alex (Paloma Vauthier), a quem criou no Canadá, do que se passou no país de seus ancestrais por conflitos políticos. Se existe a paz, existe a vida, para lhe impor um prazo de validade.

Quando Maia menos espera, caixas com fitas cassetes, fotos, escritos e outros souvenires libaneses chegam à sua casa, como se para acertarem contas com os vácuos a serem vedados. Essa é a premissa para que o casal de cineastas Joana Hadjithomas e Khalil Joreige promovam uma bem-vinda lanternagem no melodrama, extraindo de uma lataria de aparente solidez sociológica uma medula afetiva de vasos dilatados e veias abertas. Eis que a montadora Tina Baz tem liberdade de sobra para encontrar, em parceria com Joana e Khalil, a trança certa do Ontem com o Hoje, usando vinhetas, animações e muitas conversas regadas aos hormônios que nos agitam dos 15 aos 19 anos. É algo capaz de lembrar "Leto" ("Verão", 2018), de Kirill Serebrennikov, só que menos estilizado.

Existe um poderoso painel de época em "Memory Box", construído a partir de experiências similares às que viveu Joana. Temos o Líbano dos primeiros anos da década de 1980 diante de nós mediado por uma subjetividade entre o lirismo e as sombras de uma perda. Maia gozou aquele tempo na plenitude, até que estilhaços simbólicos de uma nação fraturada atingiram seu lar e as escolhas de seu pai. A educação sentimental dela se deu ali, com uma liberdade que Alex, no fim dos anos 2010, teria medo de provar. Talvez por isso, sua mãe faça de tudo para que ela não vasculhe aquelas caixas, enviadas ao Canadá por uma amiga libanesa. O que ficou em Beirute deve permanecer lá. Mas Alex vislumbra naquela máquina do tempo, em forma de pequenos objetos, uma maneira de construir uma nova conexão com sua mãe, chegando a lugares que esta nunca deixou sua filha entrar.

Locarno vai anunciar os concorrentes ao Leopardo de Ouro no início de julho. É o diretor cambojano Rithy Pahn quem vai presidir o júri oficial. Já foram anunciadas homenagens às atrizes Lucy Liu e Emma Thomoson, ao ator e diretor Jackie Chan e ao cineasta Alexander Payne.