Ímã de acessos na streaminguesfera, a série "Lupin", da Netflix, transformou Omar Sy (francês nascido em Yvelines filho de mãe mauritana e pai senegalês) num dos astros (não formados por Hollywood) de maior popularidade do planeta, no audiovisual, gerando uma busca por filmes recentes dele, ainda inéditos por aqui. Lá fora, no Velho Mundo, situação similar vem ocorrendo com a belga (nascida na comuna de Schaerbeek) Virginie Efira, protagonista do controverso "Benedetta" (2021), de Paul Verhoeven. Virginie virou umas das estrelas de maior prestígio do Velho Continente sobretudo por sua parceria com grandes diretoras (Rebecca Zlotowski, Alice Winocour e Justine Triet). Por isso, um filme que junta o talento dos dois, como é o caso do thriller "Polícia: Turno da Noite" ("Police", 2020), da franco-luxemburguesa Anne Fontaine, desperta atenção de cinéfilos por onde passe. Por aqui, o longa-metragem, que encerrou o Festival de Berlim há cinco anos, nunca teve espaço em circuito exibidor, apesar do apelo popular de seu elenco. Agora, com o apoio do streaming, a produção chega até nós, por meio da plataforma Filmelier, podendo ser alugado ou comprado via Prime Video da Amazon.
"Construí um estudo sobre sentimentos que, embora se passe no universo da Lei, não se atém aos códigos das narrativas policiais", disse Anne ao CORREIO DA MANHÃ, durante o fórum Rendez-vous Avec Le Cinéma Français, realizado em janeiro, onde ela promoveu "Bolero", seu longa mais recente. "Meu interesse é saber o como se comportam, na intimidade, pessoas que defendem a Justiça".
Existe uma medida de quantificação de qualidade de uma Berlinale que, anedoticamente, é dada por seu filme de desfecho e não pelo de largada. Ou seja, a produção de encerramento, se for boa... como "Police", garante que o evento fique na memória e deixe banzo. Foi assim em 2017, quando "Logan", de James Mangold, passou por telas alemãs. Ou como foi o caso de 2021, com a projeção de "O Mauritano", que assegurou um Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante a Jodie Foster. Em 2024, esse lugar conclusivo foi ocupado pelo filme de ação de CEP sul-coreano "Força Bruta: Punição", com Don Lee. Em 2025, essa ventura foi dada ao drama de timbre queer "Lurker", de Alex Russell. Em 2020, o evento germânico viveu momentos de brilho com o drama de farda que joga a atriz e cineasta Anne Fontaine a um quilate mais alto na vitrine das diretoras de boa reputação estética da França: seu trabalho ali, atrás das câmeras, é um ensaio sobre empatia.
Temos uma história sobre três policiais (Virginie Efira, Omar Sy e o surpreendente Grégory Gadebois) empenhados em levar um refugiado (Payman Maadi, de "A Separação") ao Charles De Gaulle, a fim de deportá-lo para a pátria onde ele sofreu toda a sorte de mazelas. Essa premissa é construída em diálogo com uma reflexão aberta por uma das melhores longas da Berlinale de 2020: "Charlatão", da polonesa Agnieszka Holland: "O direito de escolha, por vezes, pode ser um castigo". Escolher é, na trama decalcada por La Fontaine (com a ajuda da roteirista Claire Barré) do livro de Hugo Boris, fardo e fado, caminho e perdição, crime e castigo. Nesse jogo de opostos, a realizadora de "Coco antes de Channel" (2009) e "Marvin" (2017) cria uma dialética de sentimentos que esculpe múltiplas dimensões em seus personagens, todos bem defendidos por seus intérpretes. Logo no início, vemos Virginie (papel de Efira) viver uma relação abusiva em seu casamento sem sol. Ela se levanta antes da hora, dá atenção ao filho e sai para patrulhar as ruas tendo dentro de si um peso, a ser contextualizado com o colega Aristide (Sy, em seu trabalho mais doído). Juntos, eles confeccionam uma simbiose de gostos e perdas. No carro em que saem pelas ruas, levam Erik (Gadebois), um alcoólatra que cheira copos de conhaque para ficar em paz com o vício. Erik é um satélite aparentemente periférico aos desejos que se fortalecem (mas também se repelem) entre Virginie e Aristide, testados em uma missão deles contra um agressor de mulheres. É um texto inicial para um exame bem mais difícil, que é levar um expatriado (papel de Maadi) para pegar um avião.
Acostumados a cicatrizes inerentes à desinência afetiva do verbo viver, os três policiais têm a certeza de que o "alien" que levam algemado está sofrendo uma injustiça. No périplo para leva-lo até o ponto desejado pela Lei, eles vão colocar em xeque noções de dever cumprido. Daí, empatia, palavra-prostituta dos dias de hoje, servir como cimento aqui, num filme áspero, que não desgruda da gente.