Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Macarronada felliniana à mesa: mostra de cinema italiano traz iguarias inéditas ao Brasil

Indicado ao Globo de Ouro e premiado em Veneza, 'Vermiglio' é a principal atração da 8 ½ Festa do Cinema Italiano no Rio, que traz títulos inéditos ao circuito brasileiro | Foto: Divulgação

Prestes a anunciar novas produções para os festivais de Locarno (6 a 16 de agosto) e de Veneza (27 de agosto a 6 de setembro), a Itália, que de 1945 ao início da década de 1980 reinou quase soberana nas telas, rivalizando com Hollywood em múltiplas frentes, prepara-se para tomar o Brasil de assalto com sua mostra anual de filmes de autor. Se a França tem o Varilux, a pátria de Federico Fellini tem o 8 ½ Festa do Cinema Italiano, que vai de 26 de junho a 2 de julho em solo carioca, dividindo-se entre o Estação NET Rio e o Estação NET Gávea.

A abertura, este ano, fica a cargo de "Gloria!", de Margherita Vicario. O montador milanês Jacopo Quadri virá prestigiar o evento que se espalha ainda por São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Recife, Fortaleza, Salvador, Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis, Caxias do Sul, Maceió, Aracaju, Ribeirão Preto, São José dos Campos, Araraquara, São Carlos e Campinas. Editor de "Fuori", que concorreu à Palma de Ouro de Cannes, em maio, ele vem para ministrar uma masterclass gratuita na UFF, em ocasião da iniciativa Fare Cinema, no dia 30 de junho, às 14h.

No mesmo dia, às 18h, Quadri também participa de sessão especial gratuita do filme "Berlinguer - La Grande Ambizione", de Andrea Segre, no Instituto Italiano de Cultura de Rio de Janeiro. De tudo o que está no cardápio dessa maratona europeia, incluindo os badalados "Dieci minuti", de Maria Sole Tognazzi, e "O Último Chefão" ("Iddu"), de Fabio Grassadonia e Antonio Piazza, a reconstituição histórica "Vermiglio - A Noiva da Montanha", de Maura Delpero, impõe seu título como o prato principal do menu.

Batizado em referência à sua arena narrativa, isto é, o cenário onde se passa (uma comuna na província de Trento, com área de 103 km² e cerca de 1.856 habitantes), "Vermiglio" chega à 8 ½ Festa do Cinema Italiano endossado pelo Grande Prêmio do Júri do Festival de Veneza e por uma indicação ao Globo de Ouro. Seu ator de maior relevo nasceu na região de Vieste e se chama Tommaso Ragno. Ele encarna retidão no retrato que a realizadora Maura Delpero faz de um momento crítico da II Guerra, numa área alpina onde o conflito parecia distante.

No papel do professor Cesare, Tommaso, nos seus silêncios devastadores, regados a fumo de cigarros e balizados pela melodia baixinha de uma música clássica no gramofone, parece sintetizar todo o espírito de introspeção que rege "Vermiglio" mesmo nos seus momentos mais agoniantes. A sua atuação grandiosa, com o mínimo de ações, sempre implosivo, dá a medida de uma área rural que, em 1944, ouvia falar do conflito do Eixo contra os Aliados por carta. Por epístolas entregues com muito atraso. Tudo naquele seu mundo parece mudar depois de um combatente fugido das trincheiras aparece por lá e, sem falar nada dos seus dias de batalhas, arrebata o coração de uma das filhas de Cesare, num casamento do qual ele faz gosto. Não tarda, porém, para que as verdades soterradas saiam do solo e cobrem um preço caro do veterano educador e da sua cria.

Marco Tullio Giordana assina outra das joias da 8 ½ Festa do Cinema Italiano: "La Vita Accanto". No longa, projetado nos festivais de Locarno e de Buenos Aires (Bafici), há um roteiro assinado pelo aclamado diretor Marco Bellocchio, de "O Sequestro do Papa" (2023) e "De Punhos Cerrados" (1965). A trama que encantou os olhos de Locarno narra a dor de uma jovem rejeitada pela mãe ao nascer com uma marca de nascença. Ao longo dos anos, ela se transforma numa pianista ao seguir os passos de sua tia musicista.

Maura Delpero e Giordana são hoje faróis de uma nação que nos deu gigantes a granel, além do supracitado Fellini. Vieram de lá Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini. Essa nação foi próspera na seara dos filmes de gênero, seja no terror (com o giallo de Dario Argento), no faroeste (com as macarronadas de Sergio Leone, Tonino Valerii e Sergio Corbucci) e nos épicos de gladiador (o Peplum). Apesar de tantas jazidas cinematográficas auríferas, a Itália minguou por um bom tempo, de 1984 a 2008, vendo suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem. Até campeões de bilheteria como Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos como Bud Spencer e Terence Hill) deixaram de fazer os longas da franquia "Trinity", sob a guilhotina de Silvio Berlusconi e outros governantes de índole discutida, restando visibilidade a poucos cineastas. Giuseppe Tornatore (com "Cinema Paradiso") e Roberto Benigni (com "A Vida É Bela") souberam bem flertar com as receitas da Academia de Artes e Ciências de Hollywood. Nanni Moretti se edificou entre comédias políticas ("O Crocodilo") e melodramas ("O Quatro do Filho", que lhe deu a Palma dourada).

Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firmes, como o finado Bernardo Bertolucci, que foi fazer uma incursão pelo Oriente e filmar em outras línguas; e o até hoje imparável Marco Bellocchio ("Vincere"). Esses dois são crias dos anos 1960. Hoje, uma nova geração está em cena. O papel da 8 ½ Festa do Cinema Italiano é dar voz e vez a ela.