Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Elisa Tolomelli: 'Meu papel não é só realizar filmes, mas redesenhar a forma de fazê-los'

Produtora de 'Central do Brasil' e de outros 40 filmes, Elisa Tolomelli conta sua trajetória no cinema brasileiro no livro "E Lá Fui Eu!'. Em entrevista ao Correio, ela admite que o filme de Walter Salles foi o seu batismo de fogo na função | Foto: Divulgação

Dos anos 1990 para cá, Elisa Tolomelli produziu de um tudo, de thrillers ("Berenice Procura") a comédias ("Tire 5 Cartas"), numa trajetória profissional que tem "Central do Brasil" (Urso de Ouro da Berlinale de 1998) e "Cidade de Deus" (blockbuster indicado a quatro Oscars) em seu currículo. Antes trabalhou no inesquecível "A Menina do Lado" (1987), de Alberto Salvá, e rodou um longa-metragem, "Manobra Radical" (1991), joinha que arrastou galeras noventistas ao circuito, num tempo de seca da filmografia nacional. O tantão de histórias que contou pelas telas e que viveu nos sets, sobretudo depois que fundou a produtora EH! Filmes, rende uma leitura daquelas que nos grudam nas páginas em "E Lá Fui Eu". É um livro de memórias, mas funciona (que é uma beleza) como uma cartilha para quem quer aprender a filmar. Quem a edita é Literare Books. A noite de autógrafos aqui no Rio será nesta terça-feira (17), às 18h, na Livraria Argumento. Tem lançamentos em Volta Redonda (no dia 21, na Diadorim Livraria), em São Paulo (dia 1° de julho, na Livraria do Espaço SP) e em Minas Gerais (no próximo dia 3, na Quixote Livraria e Café, em BH). Sua escrita celebra o empenho das mulheres no audiovisual. "Produzir cinema sendo mulher é, muitas vezes, ocupar espaços onde não se esperava uma voz como a minha. Aí mora a força: ousar estar, decidir, bancar escolhas e abrir caminho para outras. Esse modo de agir e de pensar pertence a muitas mulheres que desbravaram o cinema assim como eu", explica Elisa, que faz uma radiografia do mercado no papo a seguir.

De que maneira escrever um livro de memórias sobre uma vida dedicada aos sets é também escrever sobre como a indústria do cinema no Brasil mudou nos últimos anos. Que mudanças mais fizeram o mercado avançar? Que desafios do passado permanecem?

Elisa Tolomelli: Ao revisitar minha trajetória escrevendo o livro, ficou evidente para mim o quanto o Cinema Brasileiro evoluiu. Comecei filmando em película 35mm e hoje trabalho com tecnologia 4K, com efeitos visuais de ponta, som refinado e imagens de altíssima resolução. Os roteiros amadureceram, as narrativas se diversificaram e a qualidade técnica saltou. A presença feminina nos sets também cresceu muito — no meu último filme, 60% da equipe era formada por mulheres talentosas, nas mais diversas funções artísticas e técnicas. Ver isso acontecendo é muito gratificante. Mas ainda enfrentamos gargalos antigos: o acesso ao financiamento continua difícil e a regulação das plataformas de streaming é urgente. Avançamos bastante, mas ainda temos muitos créditos a conquistar nessa história.

Seu livro pode ser um guia pra quem está se formando, mas para muita gente que está aí, formada e na ativa, o ofício da produção executiva ainda é um mistério. O que exatamente uma produtora executiva faz?

Numa equipe de cinema no Brasil, o produtor executivo é responsável pelo desenho de produção do filme, o planejamento da estratégia e logística da filmagem, coordena cronogramas, contrata equipe, faz a gestão do orçamento, coordena a prestação de contas, garante que tudo aconteça dentro do tempo e dos recursos disponíveis. É uma função que exige visão criativa, estratégica e muita sensibilidade. Porque não basta ter planilha: é preciso saber lidar com gente, acolher a equipe, resolver conflitos, administrar imprevistos, manter o set funcionando em harmonia. No fim, é como reger uma orquestra — com liderança e muita inteligência emocional.

Dos causos e das memórias do livro, que história mais te emocionou? Dos teus filmes, qual mais te serviu como escola?

Sem dúvida, o "Central do Brasil" foi a minha maior escola. Foi o primeiro filme que enfrentei como produtora executiva — e enfrentei mesmo, peguei pelos chifres! Era um projeto enorme, com muitas locações, exigindo soluções complexas e um planejamento estratégico minucioso. Foi ali que aprendi, na prática, como organizar um filme grande e como pensar a produção com profundidade. E o principal foi a parceria: foi linda a forma como eu e o Walter Salles fomos descobrindo o caminho desse filme juntos. Cada desafio nos ensinava algo novo. Foi um processo de criação muito rico. Outros filmes como "Lavoura Arcaica" e "Cidade de Deus" também foram produções difíceis, que me exigiram muito. Os filmes do início da minha carreira me deram a base para os quase 40 projetos que produzi depois. São histórias que me emocionam porque formaram a produtora que sou hoje.

O que mais mudou na produção com a chegada dos streamings?

O que mais mudou foi o alcance. Hoje, ao lançar um filme em uma plataforma de streaming, ele pode ser visto em até 190 países — isso é transformador. A visibilidade que o streaming oferece é enorme: abre caminhos para o nosso cinema, para a nossa cultura, chegarem a públicos que antes seriam quase inacessíveis. Ele também democratizou o acesso: pessoas que não tem facilidade de acesso às salas de cinema, podem assistir aos filmes em casa, e isso é muito importante. Além disso, o streaming trouxe novas possibilidades de linguagem, formato e até de construção de público. Hoje, a gente já pensa a produção prevendo múltiplas janelas, o que impacta desde o roteiro até o modelo de financiamento. É um novo jeito de fazer e de circular os filmes.

O que vem pela frente, após o livro? O que você tem para produzir?

Tenho vários projetos pela frente — vem coisa linda por aí! Um dos que mais me empolgam no momento é o longa "A Casa da Árvore", uma aventura para o público pré-adolescente, com multiversos, viagem no tempo e muita emoção. A história gira em torno da Nina, uma brilhante hacker de 12 anos, sem amigos reais, que acaba sendo transportada para um multiverso nos anos 1970. Lá, em contato com a natureza, com as pessoas e com as brincadeiras analógicas da época, ela descobre o valor da amizade verdadeira, a importância do convívio familiar e percebe que, por mais sedutor que seja o universo virtual, nada substitui os relacionamentos reais. É um filme com uma estética ousada, que mistura tecnologia de ponta com muita sensibilidade. Estou muito feliz com esse projeto, que tem tudo a ver com o que eu acredito: cinema que encanta, emociona e transforma.

Qual é a marca da força feminina na tua obra como produtora?

Minha trajetória sempre foi pautada por um desejo profundo de romper com estruturas engessadas, de abrir caminhos, de vencer desafios - especialmente num setor historicamente masculino como o audiovisual. Ao longo da minha carreira, procurei imprimir um olhar mais feminino à produção, não apenas nas histórias que escolhi contar, mas também na forma de conduzir os processos. Acredito que trouxe uma nova sensibilidade à maneira de produzir: uma escuta mais atenta, uma liderança menos autoritária e mais colaborativa, sem abrir mão da firmeza e da ousadia. O feminino, para mim, não é fragilidade - é potência, intuição e coragem de fazer diferente. No meu último filme, 60% da equipe era formada por mulheres talentosas, nas mais diversas funções artísticas e técnicas. Ver isso acontecendo é enriquecedor. Ser mulher na produção é também transformar o modo de fazer: criar ambientes de trabalho mais éticos, respeitosos, onde o processo importa tanto quanto o resultado. Meu papel não é só realizar filmes, mas também redesenhar a forma de fazê-los - com paixão, criatividade, ousadia e perseverança.