Em meio a múltiplas vitórias cinematográficas do Brasil na Europa e nos EUA, pós Oscar (para "Ainda Estou Aqui") e prêmios de peso em Cannes (para "O Agente Secreto") e Berlim (para "O Último Azul" e "Hora do Recreio"), a China é a próxima parada da produção nacional na busca pelas láureas e pelo prestígio das maiores maratonas competitivas do audiovisual. Terça-feira que vem, a diretora Flavia Castro lança seu novo longa-metragem, "Cyclone", em concurso na 27ª edição do Shanghai International Film Festival, em telas chinesas. A empreitada nasceu do empenho de sua protagonista e produtora, a atriz Luiza Mariani ("O Grande Circo Místico").
No enredo, a diretora de "Diário De Uma Busca" (2010) acompanha a história de Dayse (papel de Luiza), operária de uma gráfica que almeja ser reconhecida como dramaturga na conservadora São Paulo do início do século XX. Sua inspiração (livre) é Maria de Lourdes Castro Pontes (1900-1919), autora chamada alternadamente de Deisi, Daisy, Dasinha, Miss Tufão e Miss Cyclone.
Em concurso pelo Cálice de Ouro, o longa é produzido por Luiza junto com Joana Mariani e Eliane Ferreira e tem na coprodução Walter Salles e Maria Carlota Bruno. O elenco reúne Karine Teles, Eduardo Moscovis, Luciana Paes, Magali Biff e Ricardo Teodoro. A distribuição é da Bretz Films, com previsão de estreia para o segundo semestre desse ano.
Na trama rodada por Flavia, Dayse é operária e divide seu tempo entre a gráfica onde trabalha e o Theatro Municipal, onde colabora em segredo (e mantém um romance) com o diretor Heitor Gamba (Moscovis), homem casado e respeitado como autor teatral. Enquanto se esforça para ganhar uma bolsa de estudos em Paris, surge uma gravidez inesperada que ela decide interromper. A narrativa é livremente inspirada em "O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo", de Oswald de Andrade (1890-1954), e "Neve na Manhã de São Paulo", de José Roberto Walker. Na entrevista a seguir, Flavia - que está finalizando outro longa, "As Vitrines" - faz uma cartografia da representatividade feminina dessa história e celebra a força de Luiza em sua parceria criativa.
Seu cinema é mais conhecido - e respeitado - pela mirada para personagens associadas/os a transformações da História, sobretudo no processo da ditadura, que se reconfiguram na busca por um norte identitário. O que "Cyclone" apresenta de conexão ou de ruptura com essa linha autoral?
Flavia Castro: É curioso porque, paradoxalmente, "Cyclone" talvez seja meu filme mais autoral. Talvez por não ter escrito o roteiro, eu me senti muito livre na busca dos caminhos estéticos para contar essa história. Era fundamental não cair nas armadilhas de um filme que se passa em 1919, o que a gente costuma chamar de "filme de época", com reconstituições realistas muitas vezes pesadas, que é algo que, definitivamente, não me interessa. Era importante inscrever o filme no Presente, até porque a história de Cyclone ainda encontra reflexo na experiência das mulheres em 2025. No roteiro de Rita Piffer, com a colaboração de Luiza, essa dimensão contemporânea já estava colocada. A partir daí, foi um trabalho de equipe muito afinado entre a fotografia, a arte e o figurino para construir um filme em que uma mulher enfrenta a opressão de outro tempo histórico, em um espelhamento do nosso presente, onde, espero, os espectadores - e sobretudo as espectadoras - poderão se reconhecer.
O que Luiza Mariani oferece a "Cyclone" na atuação, na concepção, no empenho para levantar um projeto pessoal?
Esse filme não existiria se não fosse a Luiza. "Cyclone" nasceu do desejo e da perseverança dela em levar a personagem para o cinema, depois de ter produzido e atuado na peça baseada em "O Perfeito Cozinheiro Das Almas Deste Mundo". Durante anos, Luiza batalhou para fazer o filme, e a gente sabe como podem ser exaustivos esses processos de captação no Brasil. Mas acho que foi também um tempo importante de amadurecimento do projeto. Quando a Luíza me convidou para dirigir, fiquei impressionada com a imensa abertura, de escuta, para a gente seguir juntas na realização de um sonho que partiu dela. Como atriz - embora, eu talvez seja suspeita para falar -, acho que a Luiza está incrível! Entre muitas outras coisas, ela conseguiu algo difícil, que é dosar a mistura entre a leveza e a dureza que compõem a personagem, sem exageros, com um raro e belo equilíbrio.
Num momento de vigorosa visibilidade do Brasil nos festivais do exterior, a rota para a China aponta o quê?
"Cyclone" vai estrear - literalmente - do outro lado do mundo, num continente que tem uma das cinematografias contemporâneas mais inspiradoras. Acho isso bonito, e aponta para uma expansão revigorante dos olhares... e fora do eixo ao qual estamos acostumados.
Que caminhos os seus filmes traçaram no exterior?
"Deslembro" estreou no Festival de Veneza e "Diário De Uma Busca", no Festival de Biarritz, na França. Os dois viajaram pelo mundo, festivais afora. "Diário..." ganhou vários prêmios em festivais internacionais (Biarritz, DocLisboa, Havana etc.) e teve lançamento comercial na França, com críticas muito boas. Ficou bastante tempo em cartaz. Aliás, ficou muito mais tempo em cartaz na França do que aqui no Brasil.
Como está o seu outro longa, que se passa no Chile?
"As Vitrines" é uma ficção que se inspira nos três meses em que estive com minha mãe, meu irmão e centenas de refugiados políticos, na embaixada da Argentina em Santiago, logo depois do golpe de Pinochet. Com "As Vitrines", acho que eu fecho a trilogia de "Construção de Lembranças", que começa com o "Diário De Uma Busca" e passa por "Deslembro". O filme também está pronto e deve estrear no final do ano.