Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA / FILME / BAILARINA: Manoel Carlos com pólvora

Treinada para matar, Eve (Macarro (Ana de Armas) é solta pelo mundo e passa a diminuir a densidade populacional da Terra mando de sua coreógrafa | Foto: Murray Close/Lionsgate

Se optasse apenas por seguir a cartilha formal da saga "John Wick" na criação de "Bailarina", respeitando o universo do qual seu novo longa-metragem é derivado, o diretor Len Wiseman já teria subsídios para entregar às telonas um espetáculo capaz de renovar gramáticas nas tramas de violência. Esse espetáculo está lá, e é um dos mais contagiantes do ano, sobretudo por sua decisão de não se submeter a ditames moralizantes da patrulha ideológica da correção política. Há, entretanto, um elemento a mais no thriller que faz da cubana radicada em Hollywood Ana de Armas uma valquíria no nível da Noiva de "Kill Bill" (2003-2004): o melodrama.

O realizador de "Anjos da Noite" ("Underworld", 2003) foi muiiiito além do que se esperava dele ao oferecer ao circuito um casamento de folhetim em modo Manoel Carlos (à la "Por Amor") com pólvora. Digo mais: tem Keanu Reeves!

Diante das falências utópicas pós-68 que engajaram o cinema americano em lutas políticas nos anos 1970, Hollywood besuntou-se na ação, na década de 1980 e na primeira metade dos 1990 a fim de entorpecer corações e mentes com adrenalina. Sylvester Stallone, Schwarzenegger, Steven Seagal, Jean-Claude Van Damme e Dolph Lundgren foram os suseranos de um feudo onde a brutalidade se impôs como estado de coisas nas narrativas pop, a traduzir o zeitgeist do degelo ideológico do fim da Guerra Fria.

A onda politicamente correta iniciada em 1991 passou a ceifar muitos desses ídolos (só Stallone ficou de pé, sobretudo com a série "Tulsa King") e oferecer o humor como alternativa, criando chanchadas com pancadaria, vide os filmes com Jackie Chan ou a tetralogia "Bad Boys" (1995-2024). Um dos poucos que escaparam da foice foi Keanu Reeves, que em "Caçadores de Emoção" (1991) e "Velocidade Máxima" (1994) se fez um herói, mas incorporando dilemas emotivos geracionais que não se faziam notar nos modelos de ferrabrás anteriores.

Não por acaso, ele encabeçou uma revolução formal na representação de lutas e tiros com a sci-fi "Matrix" (1999) e voltou a encarnar um novo devir revolucionário com "John Wick" (2014-2023), que sofisticou o cenário do action movie pela "cinemática", ou seja, pelo movimento, numa lavra de longas-metragens realizadas por dublês, como Chad Stahelski e David Leitch. O termo entre aspas acima é uma referência da Lei de Aceleração, levando a ação a parâmetros dignos de um desenho animado do Papa-Léguas contra o Coiote. As normas de gravidade e a sua verossimilhança são dignos da Acme, aquela fábrica fictícia dos desenhos animados "Looney Tunes", do Pernalonga. Como naquelas animações alucinadas, o argumento dos calvários de Wick e, agora, o da Bailarina Eve é um fio muito tênue, mas serve de vetor a sequências de perseguição e de enfrentamento corpo a corpo num grau de vertigem singular.

Wiseman, que despontou como um prodígio em "Duro de Matar 4.0" (2007), consegue travar um diálogo com essa escrita fílmica acelerada dos longas de Wick acrescentando tonalidade folhetinesca à trama de "Ballerina" (título original da fita com Ana de Armas).

"Colombiana" (2011), com Zoe Saldaña, um memorável exercício narrativo sobre mulheres em conflito armado, é uma referência teórica e prática para "Bailarina", uma vez que seu fotógrafo (em estado de graça), Romain Lacourbas, veio de lá. Ele oferece rigor plástico à transposição do roteiro de Shay Hatten às telas, aquecendo em fervura máximo tanto as sequências de choro quanto as de balas perdidas (e achadas).

Corre-se sem parar ao longo das duas horas e cinco minutos de "Bailarina" - e sem que a gente note o tempo passar - por sua conexão com a estética de centrífuga delineada há uma década por Stahelski e Leitch. A montagem feérica de Jason Ballantine e Julian Clarke assegura o ritmo sem deixar que a tensão sentimental de Novela das Oito se perca. A edição deles já começa febril quando Eve é moleca e vê seu pai ser assassinado a mando do Chanceler, líder de uma guilda de matadores que se mantém nas raias da barbárie. O vilão é encarnado magistralmente por Gabriel Byrne, gênio por trás de "Ajuste Final" (1991), dos Irmãos Coen. Poucos atores encarnam a Maldade feito ele faz. Até Arnoldão Schwarzenegger tremeu para seu Diabo em "Fim dos Dias" (1999).

Seu Chanceler executa até antigos aliados. Com a perda da figura paterna, a pequena Eve é deixada à míngua até ela ser adotada pela organização de John Wick, a Alta Cúpula, reunida envolta do Hotel Continental pelo Zé Pelintra Winston (Ian McShane). A guria é confiada a uma de suas agregadas, a célula de assassinos Ruska Roma, chefiada pela coreógrafa (e bandida) A Diretora, um trem-ruim que Anjelica Huston encarna com elegância a borbulhar. Treinada para matar, Eve é solta pelo mundo e passa a diminuir a densidade populacional da Terra mando de sua patroa. Numa tarefa, ela esbarra com o Chanceler e decide se vingar, o que a faz cair em desgraça aos olhos da Ruska Roma. Não por acaso, Wick, o Baba Yaga em pessoa, é escalado para dar cabo dela, num enredo que se passa antes do quarto longa da série com Keanu, lançado em 2023.

Nessa corrida para escapar do Bicho-Papão Wick e eliminar seus desafetos, ela tromba com uma matadora misteriosa (Lena, vivida pela colombiana Catalina Sandino Moreno, indicada ao Oscar por "Maria Cheia de Graça"), que carrega segredos tristes de seu passado. Ali, uma nova modalidade dramatúrgica de Glória Pérez com "Rambo" se desenha, garantindo ao circuitão um estudo sobre o ódio, vigoroso no script e vigoroso plasticamente. É um Wiseman para ficar para a posteridade, com Fabiana Aveiro a dublar Ana de Armas e com Reynaldo Buzzoni na dublagem de Keanu. Taí um filmaço.