Netflix em forma de gente(s), a Cavídeo não cessa de criar, partindo agora para uma projeção em São Paulo do .doc "Baile Soul", no Festival In Edit, nos dias 12, 15 e 20 de junho. Há ainda um novo experimento (agora de tom metafísico), chamado "Andrômeda", sendo gerado nas engrenagens cerebrais e afetivas de Cavi Borges. Ao mesmo tempo ele e sua família de amigos e colaboradores engrenam uma nova edição da Mostra de Cinema Cavídeo, que começou na quinta e vai levar filmes brasileiros a seis regiões diferentes da cidade, daqui até julho.
A primeira etapa começou no dia 5 e segue até 27 de junho com exibições em Santa Cruz, Cidade de Deus, Vista Alegre, Vidigal e Rocinha. O hemisfério dois do projeto ocorre mês que vem no cine Estação NET Botafogo, com filmes de diretores de regiões periféricas. A fase atual da mostra - com entrada gratuita e tradução em Libras, apoiada pela RioFilme - inclui narrativas que refletem desajustes urbanos e resiliências sentimentais, como "Cidade de Deus - 10 anos depois" (2012), que Cavi dirigiu com Luciano Vidigal; "Mundo Novo" (2021), de Álvaro Campos e "Kasa Branca".
Lançada em janeiro, essa joia rendeu o troféu Redentor de Melhor Direção ao já citado Vidigal no Festival do Rio. Há um quarto título nesse pacotão que merece especial atenção, pois volta a ganhar uma telona dois anos depois de sua estreia em circuito e regressa com novos sentidos, abrindo novas veredas: "A Festa de Léo" (2023), de Luciana Bezerra e Gustavo Melo. Sua sessão será no dia 27 de junho, no Instituto Arteiros (Rua da Luz s/nº Apês, na CDD, ao lado da quadra do Coroado), às 20h. É uma sessão simbólica imperdível.
Lançada em 2022, a mais famosa imersão do cinema de ficção sul-americano nas favelas e conjuntos habitacionais do Rio de Janeiro, "Cidade de Deus", teve a sua génese em uma produtora de São Paulo e tem um realizador de origem paulista: Fernando Meirelles. O fascínio geográfico que os bolsões populacionais em vielas, morros e cortiços de uma cidade à beira do mar exerce sobre os demais estados brasileiros vem desde "Amei Um Bicheiro" (1953) e ganha um neorrealismo perfumado de brasilidade com o duo "Rio 40 Graus" (1955) e "Rio Zona Norte" (1957). Esse Brasil que sobrevive à base da solidariedade, num drible diário dos vetores armados do tráfico (e hoje, cada vez mais, das milícias), apoiado em código de sororidade entre famílias de pais ausentes, ganha um colorido sentimental em "A Festa de Léo".
Esse exercício de "autogeografia" foi construído em dupla por Luciana Bezerra e Gustavo Melo, com que trabalharam ainda em "5xFavela - Agora Por Nós Mesmos", lançado em Cannes em 2010. Duas atrizes em estado de graça encabeçam o elenco: Cíntia Rosa e Mary Sheila. As duas se articulam com um coletivo de intérpretes vindos do morro do Vidigal. Repleto de rudimentos da História do Cinema, o filme é uma mistura do que Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) fez em sua fase pré-moderna dos anos 1950 com "Ladrões de Bicicletas" (1948). A fotografia de Renato Falcão (de "Festa de Margarette") conversa atentamente com a centelha dionisíaca de tal tradição cinéfila.
No roteiro de Luciana e Melo, Cíntia é a vendedora de barraca de praia que passa por toda a sorte de percalços para garantir ao filho um aniversário digno na celebração dos 12 anos. Mas o pai do garoto, o dependente químico Dudu (vivido por Jonathan Haagensen), vai dar trabalho para ela, com os seus sucessivos vacilos na comunidade. Numa realização firme, as vozes autorais de Luciana e de Gustavo ecoam numa trilha de aventura para dar um equilíbrio pop a um (melo)drama social realista. Parceiro de Luciana no curta "Acende a Luz", Márcio Vito rouba para si cada sequência na qual aparece no papel do chefe da personagem de Cíntia.
Cada personagem desenha uma peça essencial num puzzle sobre as irregularidades sociais que cercam um núcleo empobrecido que é uma espécie de estado de exceção numa metrópole onde o crime tem múltiplas formas. A forma mais perigosa é a da própria Lei, aquela que se escreve com letra maiúscula e faz da corrupção uma prática discursiva.
Ó... a próxima sessão da mostra Cavídeo será no dia 9, às 19h30, no Cine Nós do Morro (Rua Doutor Olinto de Magalhães, 54 - Vidigal), com o obrigatório "Mundo Novo" em realce.