Por: Sérgio Alpendre (Folhapress)

CRÍTICA / FILME / ENTRE DOIS MUNDOS: Curiosa inversão de expectativas

Juliette Binoche vive uma escritora premiada que trava contato com realidade cruel do mercado de trabalho ao se empregar como faxineira em 'Entre Dois Mundos'  | Foto: Divulgação

Com atraso considerável, estreia "Entre Dois Mundos", longa francês do escritor e cineasta bissexto Emmanuel Carrère, estrelado por Juliette Binoche e exibido no Festival de Cannes de 2021. A demora da estreia não tem muita relação com a qualidade. Filmes excelentes esperam anos numa gaveta de distribuidora, sendo por vezes lançados diretamente em streaming, enquanto outros, sofríveis, entram logo em circuito comercial.

Binoche é uma premiada escritora que resolve escrever um livro sobre a precariedade do trabalho. Para isso ela se muda de Paris para Caen, no norte da França, onde começa a trabalhar como faxineira, na estação de balsas de Ouistreham, que leva passageiros para Portsmouth, na Inglaterra.

Mas tudo isso vamos descobrindo aos poucos, pois o filme procura desconstruir a estrela Binoche do mesmo modo que a autora consagrada resolve viver a vida como uma pacata faxineira.

O filme começa com uma jovem loira andando apressada pelas ruas de Caen. Ela entra na agência de emprego aparentando pouca paciência. Uma funcionária da agência chama por Marianne Winckler, e uma outra mulher, que estava sentada, olha para trás e se levanta. É Binoche.

Enquanto Marianne caminha até a mulher que a chamou, a loira apressada de antes entra na sua frente e começa a discutir com a funcionária. Essa loira, que depois saberemos ser Chrystèlle, vivida por Hélène Lambert, é encaminhada para um outro setor, para onde vai, ainda impaciente. Marianne é então atendida.

Curiosa inversão de expectativas. Muitas vezes vimos no cinema uma falsa protagonista dando lugar à verdadeira protagonista. Aqui, isto acontece para tirar o peso da estrela Binoche, apresentá-la em uma situação desfavorável, uma desempregada que é atravessada por outra. O espectador que não ler a sinopse, não saberá ainda quem ela é no filme.

Marianne não conhece ninguém em Caen. Ela parece gostar de não ter mais contato com as pessoas de Paris, onde ela morava. Uma personagem em fuga temporária de sua vida pregressa, disposta a experimentar novos desafios para sua criação artística.

Ela se torna amiga de duas outras faxineiras, a jovem Marilou, personagem de Léa Carne, e Chrystèlle, a apressada que a atravessara no início.

Outras pessoas passam por ela, tornando a experiência mais palatável, até mesmo fascinante nesses encontros. Uma das primeiras é Cédric, personagem de Didier Pupin, um homem simpático e respeitoso, que logo deixa claro um interesse maior por ela, além da amizade.

Por mais que outras pessoas surjam, é com Chrystèlle e Marilou que Marianne vai formar um núcleo tão forte e prematuro de amizade que elas combinam de se encontrar todo 4 de abril para comemorar a data em que se aproximaram.

Há um problema sério com a protagonista, levado com frontalidade pelo filme. Ao mentir sobre sua história de vida, ela trai a confiança das duas amigas, como se as usasse como meio de fazer sucesso, abandonando-as quando a conveniência a chamar.

É precisamente a queixa que alguns intelectuais fazem do trabalho do recém-mortofotógrafo Sebastião Salgado. Segundo eles, Salgado explora a miséria humana para se dar bem artisticamente. Para a maioria, contudo, ele joga luz, como artista consagrado, num problema que outros preferem ignorar.

O modo mais digno de Marianne fazer sua pesquisa seria passar um tempo com as faxineiras, entrevistando-as, acompanhando-as no trabalho, mas sempre jogando limpo. Ao fazer isso, ela não sentiria na pele a dureza do trabalho. Talvez seu livro ficasse menos realista, embora realismo como baliza de qualidade seja bem discutível em arte.

De todo modo, há algo que sempre vai separá-la das novas amizades. Ela não precisa estar ali. Se a coisa apertar, ela pode desistir e se recolher no conforto, enquanto Chrystèlle e Marilou jamais teriam essa opção.

"Entre Dois Mundos" é o segundo longa de ficção de Carrère. Ele mesmo escreveu o roteiro, com Hélène Devynck, adaptação de uma história escrita por Florence Aubenas.

Seu primeiro longa de ficção é o curioso "O Bigode", de 2005, adaptação de seu próprio livro sobre as consequências na vida do personagem de Vincent Lindon depois que ele resolve raspar o bigode, companheiro de toda a vida adulta.

Como cineasta, Carrère ainda está engatinhando. Mas já se nota, neste segundo longa, uma evolução com relação ao primeiro, até mesmo na coragem de tocar em questões éticas. O começo da carreira como crítico de cinema da Positif e da Télérama o ajudaram a ter uma base sólida nas duas artes.