Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Paul Schrader, o pastor de imagens

Richard Gere interpreta um documentarista em estado terminal em 'Oh Canadá', que retoma sua parceria com Paul Schrader 44 anos depois de 'Gigolô Americano' | Foto: Divulgação

A caminho de seu 79º aniversário, a ser celebrado no próximo 22 de julho, Paul Schrader não tem registros de novos filmes para rodar daqui até lá, mas anda onipresente no streaming e tem uma joia inédita em circuito nacional para lançar entre nós na quinta-feira: "Oh, Canadá". Celebrado como um pilar do roteiro nos Estados Unidos, com "Taxi Driver" (1976) e "Touro Indomável" (1980) no currículo, ele concorreu à Palma de Ouro de Cannes com seu recente exercício pela direção, apoiado no carisma de Richard Gere.

Em 1980, os dois trabalharam em "Gigolô Americano", que pode ser visto hoje na Prime Video da Amazon, e virou um marco da representação masculina na América yuppie. Agora, na nova parceria, eles unem forças num estudo sobre desapontamentos em relação a uma nação, expresso numa saga de deserção. A base do projeto é o romance "Foregone", escrito por Russell Banks, que assume um ás da não ficção como protagonista. A partir dele, Schrader presta tributo à tradição do documentário.

"Quando peguei o livro, já havia um documentarista no papel central. Cannes recebeu faz pouco um mestre desse setor, Frederick Wiseman. Houve uma revolução a partir do real nas formas de se fazer cinema nos Estados Unidos, entre o fim dos anos 1960 e os 80, e eu fui parte dela. Sabíamos que estávamos mudando o conteúdo dos filmes", disse Schrader ao Correio da Manhã em Cannes. "Em anos recentes, deixaram de fazer cinema pensando na inteligência do público", disse o cineasta, em solo carioca, ao receber uma retrospectiva no Festival do Rio, em 2013.

Desde então, ele dirigiu alguns de seus mais inspirados filmes, como a comédia criminal "Cães Selvagens" ("Dog Eat Dog"), com Nicolas Cage e Willem Dafoe, projetada no desfecho da Quinzena de Cineastas de Cannes, em 2016. Ela hoje está na Amazon. Por lá também se vê a obra-prima de Schrader como realizador: "Fé Corrompida" ("First Reformed", 2017), que lhe rendeu uma indicação ao Oscar e 62 prêmios ao mostrar os dilemas existenciais de um capelão militar (Ethan Hawke) apaixonado por uma jovem grávida. "Oh, Canadá" se enquadra na esfera de seus trabalhos mais inspirados. No longa que estreia amanhã, o realizador Leonard Fife (Gere, em firme atuação), decide dar seu depoimento a um ex-aluno, revelando como sua carreira e reputação de ícone progressista foram construídas com base em mentiras e meias-verdades que nem mesmo sua companheira conhecia. Ele relembra, por exemplo, do tempo em que desertou da Guerra do Vietnã. É um estudo sobre o pacifismo e a noção de pátria. Fife é vivido por Jacob Elordi em sua fase mais jovem.

Esta semana, Schrader fez um post nas redes sociais para comemorar a exibição de um de seus clássicos, o thriller "Hardcore: No Submundo do Sexo" (1979), num festival em Tóquio. Suas postagens mais recentes têm cercado notícias e obituários, mas ele costuma ter um dedo nervoso no Facebook. Ativíssimo (muitas vezes, ferino) online, com desabafos passionais sobre os longas que amou ("A brilhante biografia de Bob Dylan, 'Um Completo Desconhecido' é o meu filme favorito de 2024", escreveu), o cineasta estreou este ano no formato audiobook, com o lançamento de uma versão em áudio de seu seminal livro de ensaios "Transcendetal Style In Film: Ozu, Bresson, Dryer". Na Amazon, rola a chance de comprar a versão portuguesa (em papel) de seu monumental estudo sobre mestres da tela por R$ 141,37, numa publicação da lusitana Edições 70. Traduções mais recentes desse seu tratado sobre linguagem cinematográfica pipocaram conforme o cineasta viu seu prestígio subir de patamar com os elogios a "Oh, Canadá").

Fama pela escrita

Contemporâneo de Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma e Steven Spielberg nesse movimento, ele fez fama pela escrita de roteiros antes de estrear como realizador, em 1978, com "Vivendo na Corda Bamba". Dirigiu cults como "A Marca da Pantera" (1982), "Mishima: Uma Vida Em Quatro Atos" (de 1985, hoje disponível na MUBI) e "Auto Focus" (nomeado à Concha de Ouro de San Sebastián em 2002). Uma de suas mais recentes (e melhores) incursões por trás das câmeras está no cardápio da Amazon: "O Contador de Cartas" ("The Card Counter"). Eleito pela revista "Cahiers du Cinéma" (bíblia do audiovisual) um dos dez melhores filmes de 2021, esse thriller concorreu ao Leão de Ouro de Veneza. Nele, o ator Oscar Isaacs vive William Tell, um ex-militar com TOC que virou um bamba do carteado ao largar uma vida na caserna na qual coordenava tortura.

Na Amazon Prime, Schrader comparece com o devastador "O Jardim dos Desejos" (2022). Há um momento sublime de catarse nesse thriller no qual o protagonista, o jardineiro Narvel Roth (Joel Edgerton), passa por uma mata de beira de estrada e a vê florescer, vicejando flores reluzente em plena noite. Ainda na Amazon, Schrader comparece com "Temporada de Caça" ("Affliction", 1997). Esse filmaço conta com um elenco em estado de graça, coroado por um Oscar de Melhor Coadjuvante dado a uma lenda do cinema moderno, James Coburn (1928-2002).

Vários desses elementos, que traduzem os demônios dos EUA, estão em "Oh Canadá", que pode ser encarado, desde já, como um dos achados deste semestre nas telas.