Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Um continente chamado Lucia Murat

A retrospectiva Cinema de Resistência: Um Olhar Sobre O Brasil Invisível é centrada nos feitos de Lucia Murat, revisitados sob a curadoria da professora, crítica e pesquisadora Denise Lopes | Foto: Taiga Filmes

Ímã vivo de prêmios por onde passa, com seu cinema confessional e memorialista sintonizado sobretudo com as chagas da tortura, Lucia Murat abriu o ano sendo premiada na Berlinale com um .doc sobre educação. Cada vez que se elenca o recente rol de sucessos do Brasil no exterior após o Oscar de "Ainda Estou Aqui", indo do Grande Prêmio do Júri de Berlim a "O Último Azul" até chegar ao desempenho arrasa-quarteirão de "O Agente Secreto" em Cannes (com quatro láureas), há que se ressaltar a consagração de "Hora do Recreio" em telas da Alemanha.

Seu retrato para a resiliência estudantil na rede pública rendeu para Lucia a menção especial da mostra Generation. Trata-se do filme mais requintado da realizadora carioca desde "Quase Dois Irmãos" (2004), estudo sobre fraternidade num Rio sitiado pelo tráfico e pela inadimplência das autoridades. Ela ganhou o troféu Redentor de Melhor Direção no Festival do Rio por esse misto de drama e thriller político que, há 20 anos, teve de expandir seu circuito dada a demanda do público nas salas do Grupo Estação e arredores. Se você nunca viu essa pepita em telona, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-RJ) vai te dar uma canja nesta segunda, às 16h.

Sua projeção integra a retrospectiva Cinema de Resistência: Um Olhar Sobre O Brasil Invisível, centrada nos feitos de Lucia, revisitados sob a curadoria da professora, crítica e pesquisadora Denise Lopes. Sua trama se ambienta nos anos 1970, quando o país vivia amordaçado pelo cabresto dos generais, numa gestão autoritária e mortífera que virou o tema central da filmografia de Lucia, da década de 1980 até ficções recentes como "O Mensageiro", que a premiou em múltiplas frentes no Festival de Paraty, em 2024.

 

Um legado singular que consolida uma cartografia de Brasis que resistem

O documentário 'A Hora do Recreio' rendeu menção especial à diretora Lucia Murat na última edição do Festival de Berlin, realizada em fevereiro | Foto: Taiga Filmes

No enredo de "Quase Dois Irmãos", muitos presos políticos foram levados para a Penitenciária da Ilha Grande, na costa do Rio de Janeiro. Da mesma forma como os militantes detidos foram isolados naquele xilindró insular, assaltantes de bancos também estavam submetidos à Lei de Segurança Nacional e condenados ao esquecimento. Ambos cumpriam pena na mesma galeria. O encontro entre esses dois mundos é parte importante da história da violência que o país até hoje enfrenta, a partir da gênese do Comando Vermelho, retratada aqui a partir da relação entre um criminoso (Flávio Bauraqui, esplendoroso) e um ativista de esquerda (Caco Cicoler). Bauraqui ganhou o Redentor na Première Brasil de 2024 por seu desempenho.

O vigor do que o CCBB vai conferir esta tarde é parte da fricção histórica e estética de Lucia nas recordações dos Anos de Chumbo. Foi a partir de um misto de .doc e ficção, "Que Bom Te Ver Viva" (1989), que a realizadora passou a ser encarada como porta-voz de corpos e de espíritos que foram reprimidos, agredidos e torturados pelo Estado em seus tempos de farda verde oliva - em especial depois do AI-5.

Macaque in the trees
'Que Bom Te Ver Viva' repassa memórias da ditadura, com Irene Ravache em cena | Foto: Taiga Filmes

Exibida no CCBB, a produção está na plataforma MUBI. Ela foi agraciada com o troféu Candango de Melhor Filme, Montagem e Atriz (Irene Ravache) no Festival de Brasília, no fim dos anos 1980. A partir da mistura dos delírios e fantasias de uma personagem anônima com depoimentos de oito ex-presas políticas brasileiras, o longa aborda a tortura durante a ditadura no Brasil.

Macaque in the trees
Grace Passô ganhou a láurea de Melhor Atriz no Festival do Rio de 2017 por 'Praça Paris' | Foto: Fotos/Taiga Filmes

Até o fim da mostra sobre Lucia, o CCBB revive incursões da cineasta pelas periferias do Rio, como "Maré, Nossa História de Amor", que a levou à Berlinale, em 2008. No encerramento desse festival Murat, no próximo dia 23, será exibido "Praça Paris", que ganhou o Redentor de Melhor Atriz na Première Brasil de 2017 (dado a Grace Passô) e valeu à sua diretora outro prêmio de Melhor Realização na maratona cinéfila carioca. Uma das joias

Essa revisão é um caminho para que se entenda o legado singular de Lucia (e sua produtora, a Taiga) na consolidação de uma cartografia de Brasis que resistem ao sexismo e combatem os ranços do governo ditatorial de 1964 a 1985.

É esse sentimento combativo - combinado com destrezas de enquadramento - que levou "Hora do Recreio" a brilhar na Berlinale. O filme é uma aula de estrutura dramatúrgica. Murat retrata a reação de uma série de alunas/es/os a uma pesquisa com professores da rede pública. As turmas ali documentadas discutem temas como evasão escolar, racismo, tráfico de drogas, bala perdida, feminicídio e gravidez precoce, além de performarem uma peça de teatro baseada no livro "Clara dos Anjos". Por meio dessa dramatização, realizada por atores dos grupos Nós do Morro, do Vidigal; Grupo de Teatro VOZES, do Cantagalo; e Instituto Arteiros, da Cidade de Deus, alunas e alunos em cena comparam as interpretações às suas vivências como moradores de comunidades. É uma das narrativas documentais de maior vigor de 2025. Que estreie logo...