Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Mario Martone sai de Cannes deixando 'Nostalgia'

Valeria Golino em 'Fuori', de Mario Martone, foi um dos títulos indicados à Palma de Ouro na edição 2025 do festival francês | Foto: Divulgação

 

Com a entrada de "Três Homens Em Conflito" (1966) na MUBI, o cinema italiano festeja, via streaming, uma tradição de narrativas de gênero histórica, que levou a Cannes este ano com "Fuori", drama estrelado por Valeria Golino que concorreu à Palma de Ouro celebrando o filão dos filmes de prisão. É um trabalho maduro do diretor Mario Martone, que revisita feitos da escritora Goliarda Sapienza, detida em decorrência de um delito nunca devidamente comprovado. Após sua libertação, a amizade entre ela e as outras detentas continuou, o que causou desentendimentos nos círculos intelectuais em que frequentava.

A chegada da projeção desse filme faz com que o planisfério cinéfilo redescubra o que Martone fez de mais potente. No caso, o tocante "Nostalgia", revelado em solo cannoise em 2022, é o que mais (e melhor) abre caminhos para que ele amplie sua visibilidade. Na Côte d'Azur, a Fnac dá uma forcinha a ele, ao colocar essa fita em destaque entre suas atrações de maior relevo na seção de DVDs e de Blu-Ray. Em Roma, discute-se a relevância de sua filmografia como um novo farol para aquele país nas telonas.

Há tempos, desde "A Grande Beleza" (2013), de Paolo Sorrentino, uma produção da pátria de Federico Fellini não mexia tanto com os corações de cinéfilos e não movia tanto as bolsas de aposta de Cannes como "Fuori" faz agora. Coroado há 30 anos com o Prêmio Especial do Júri de Veneza, por "Morte di un Matematico Napoletano" (1992), Martone concorreu em Cannes, em 1995, com "L'Amore Molesto", e lá voltou, via Un Certain Regard, em 1998, com "Teatro di Guerra".

Nada do que fez nos anos 1990 ou nas duas últimas décadas se compara ao que ele entrega no drama com elementos de thriller de máfia "Nostalgia", exibido pela primeira vez na competição pela Palma de Ouro, há três anos. É um filme que teve, na Croisette, um efeito de "descoberta", embora o mais correto, diante do currículo do realizador, seria falar em "redescoberta", em "reinvenção", seja dele mesmo, seja a dos códigos cinematográficos de sua pátria. Pátria que nos deu gigantes: Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini. Pátria que minguou por um bom tempo, de 1984 a 2008, vendo suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem.

Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firmes, como o finado Bernardo Bertolucci, que foi fazer uma incursão pelo Oriente e filmar em outras línguas; e o até hoje imparável Marco Bellocchio ("Vincere"). Mas esses dois são crias dos anos 1960. Martone, não. Ele é um moderno tardio, que não se fez na liquidez da pós-modernidade. Mas ele teve a sagacidade de entender parte das chagas desse nosso tempo, como é o caso da gentrificação; do emasculamento; do sucateamento da honra; da destruição dos signos de fé, por apostasia ou por banalização. E esse sagaz olhar rendeu a Cannes um presente em forma de 1h57 de filme, universalíssimo.

Ferramenta

Pierfrancesco Favino - que filmou "O Traidor" de Bellocchio no RJ - é o aríete com o qual Martone avança rumo à consagração, com seus ângulos de câmera vívidos e inquietos, a explorar a profundidade de campo da Nápoles para onde seu protagonista regressa. Favino esteve na abertura da Quinzena de Cineastas com "Enzo", de Robin Campillo.

Ele tem 95% de "Nostalgia" pra si. Os 5% que sobram se dividem entre o padre Rega (Francesco di Leva) e o bandido Oreste (Tommaso Ragno, um sósia do brilhante Roney Villela). Este foi o maior amigo que Felice, construtor e dono de empreiteira no Egito, vivido por Pierfrancesco, teve em seus anos de formação.

No início do longa, Felice regressa à sua cidade natal par cuidar da mãe doente. É um terço de arrancada doce, onde a câmera do fotógrafo Paolo Carneva gira em espasmos, caçando um quadro que fuja da obviedade. Caça, caça… e consegue. Sempre. Passada essa introdução com ares melodramáticos, de mamãe e filho, uma pergunta feita por Felice muda as rédeas da narrativa: "Onde está Oreste?". No passado, os dois eram unha e carne, até um crime mudar tudo.

Ao tentar entender o que foi feito daquele amor de ontem, amor de bromance, de pura amizade, Felice começa a se (re)encaixar numa paisagem que abandonou há 40 anos. Mas nem sempre a paisagem nos quer de volta. O saldo é a ressaca. Mas nem toda ressaca é só de álcool, ou só de sal. Eis o que Martone nos mostra, num longa devastador. "Fuori" foi pelo mesmo caminho, com Golino em estado de graça.