Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Olhos atentos para Jafar Panahi

Jafar Panahi e a Palma de Ouro conquistada no festival francês | Foto: Victor Boyko/Festival de Cannes

Ao entrar para o seletíssimo rol dos ganhadores da Palma de Ouro de Cannes, num time que, nos últimos dez anos, incluiu Jacques Audiard, Ruben Östlund, Hirokazu Koreeda, Bong Joon Ho, Julia Ducournau, Justine Triet e Sean Baker, o iraniano Jafar Panahi reconheceu em Cannes o quanto o risco à sua segurança aumentou. Seu país natal há tempos é azedo em relação aos filmes que ele faz desde "O Balão Branco" (ganhador da Camèra d'Or na Croisette em 1995).

O azedume é tanto que os líderes de sua nação já enfiaram o diretor de 64 anos na prisão duas vezes (em 2010 e 2022) e tratam sua obra como um atentado à dignidade do Irã. De lá não se ouviu comemoração oficial no último sábado, quando ele conquistou o prêmio máximo do Festival de Cannes por "Un Simple Accident".

O fato de se tratar de uma história de vingança de um torturado contra o agente de estado que o vitimizou complicou ainda mais as chances de o governo de sua pátria festejar a consagração de um realizador que, há três décadas, segue a pavimentar um legado autoral no qual poesia e indignação caminham juntos, numa linha (por vezes) tênue entre ficção, etnografia, documentário e semiótica. Quando capturado, Panahi fez greve de fome e mobilizou a Anistia Internacional.

Se em seu lar sua situação não é das mais confortáveis, planisfério cinéfilo adentro ele é objeto de adoração, a julgar a atual corrida (no streaming) pela produção cinematográfica dele. No Brasil, as plataformas Reserva Imovision, Telecine e Prime Video são o caminho para encontrar seus trabalhos, entre os quais "Táxi Teerã", pelo qual ele recebeu o Urso de Ouro da Berlinale, há dez anos.

"Para um cineasta, cada prêmio é um prazer e foi necessário muito trabalho para ganhar este troféu", disse Panahi em Cannes, com a Palma nas mãos. "Em um determinado momento, eu tinha muitas imagens diferentes passando pela minha cabeça. Estava pensando em todos os rostos dos meus amigos que estavam na prisão comigo. Naquela época, nós estávamos na cadeia, mas o povo iraniano estava nas ruas lutando pela liberdade. Naquele momento, eu disse a mim mesmo que estava feliz por eles".

 

Atmosfera de thriller à moda Costa-Gravas

'Un Simple Accident' foi baseado em histórias vividas pelo realizador Jafar Panahi e por outras vítimas da perseguição promovida pelo regime fundamentalista iraniano | Foto: Divulgação

Seu eletrizante "Un Simple Accident" parece thriller. Enerva como um. Remete ao Costa-Gavras de "Estado de Sítio" (1972) ou de "A Confissão" (1970) por dialogar com a cartilha do thriller político.

No arranque do longa-metragem, Panahi segue num carro onde um casal tenta conter uma menininha em plena euforia, com seu boneco de pelúcia preferido. Uma colisão trava o veículo. A pequena tem medo do que se passa, mas o pai a acolhe, ainda que com severidade. Nesse início tenso, ocorre o tal "simples acidente" do título, que deflagra uma cruzada de revanche sem medo de exposições gráficas da violência. Aparentemente, abateu-se um cão. O pai entra num galpão para pedir ajuda e alerta um operário, que parece reconhecer o som característico do seu andar manco, fruto de uma prótese na perna. No dia seguinte, o trabalhador bate na cabeça desse homem com uma pá antes de colocá-lo na parte de trás de sua van, que se torna tanto a força motriz quanto a principal locação desse filme filmado num regime próximo à clandestinidade.

"Eu aprendi com 'Táxi Teerã' a filmar em veículos em movimento. Num carro, você se sente em segurança", disse Panahi em Cannes, entrando em detalhes de uma de suas detenções. "Eu fui vendado e levado para uma cela tão pequena que eu mal podia me mexer. Lá eu colhi histórias que compõem o roteiro desse meu novo filme".

Em "Un Simple Accident", o sujeito capturado é um agente do governo que torturou pessoas em nome dos seus líderes. Sua captura é uma educação política na qual seus captores também são educados, sob a cartilha da empatia. Numa sequência emocionante, o tal operário precisa ajudar uma mulher grávida e amparar a menininha filha de seu algoz de outrora.

"Muita gente me pergunta por que eu não desisto do cinema, mas não sei fazer outra coisa que não filmar. E me entrego ao projeto cinematográfico sem pensar em dinheiro. Tanto é que começo cada longa com recursos do meu bolso", disse Panahi, que rodou "Un Simple Accident" em regime de semiclandestinidade.

Na prisão, Panahi criou uma estética semiológica, capaz de filmar de dentro de seu cárcere domiciliar (ao lado de seu lagarto de estimação) ou do volante de um automóvel. Laureado com o Leão de Ouro de Veneza com "O Círculo", há 25 anos, o realizador concorreu à Palma dourada de Cannes antes com "3 Faces", que lhe rendeu a láurea de Melhor Roteiro em 2018. Há como ver essa joia no Arte 1 Premium ou na Amazon.

Ainda em Cannes, em 2011, quando ainda estava sob detenção, o diretor conquistou o troféu Honorário da Quinzena, a Carroça de Ouro, em 2011. Antes, em 2003, recebeu o Prêmio do Juri cannoise da mostra Un Certain Regard por "Ouro Carmin". Seu sucesso mais recente, "Sem Ursos", foi laureado com o Prêmio do Júri de Veneza, em 2022. Há como encontra-lo no streaming da Imovision.