Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Os fantasmas vivos da História

'Magalhães', o novo longa de Lav Diaz, aborda o colonialismo europeu ao apresentar a trajetória do navegador português Fernan de Magellan, vivido pelo astro mexicano Gael García Bernal | Foto: Divulgação

Causou espanto o anúncio de que "Magalhães", o novo filme do diretor filipino Lav Diaz, dura duas horas e 45 minutos, o que, para os padrões dele é um curta. Há nove anos, ele saiu premiado da Berlinale (com a láurea de inovação de linguagem) por "Canção para um Doloroso Mistério", que durava oito horas e cinco minutos. Em 2022, ele exibiu no FIDMarseille, na França, "A Tale of Filipino Violence", que ocupava as telas por seis horas. Seu trabalho mais famoso, "A Mulher Que Se Foi" (ganhador do Leão de Ouro de Veneza em 2006), estende-se por três horas e 46 minutos.

Cada segundo do que filma expões suas entranhas, como se vê na Croisette este ano em sua parceria com Gael García Bernal. "Há um pouco de Lav Diaz em cada plano que eu rodo. Um Lav Diaz que está em busca de entender sua alma", disse o cineasta ao Correio da Manhã na Suíça, no Festival de Locarno.

Lá, e agora em Cannes, o tema da extensão excessiva de suas tramas foi alvo de um debate com foco no comportamento da plateia. "Por que ninguém estranha quando um colega maratona uma temporada de dez episódios de uma série, como 'Game of Thrones' de uma só vez, numa só noite, mas se incomoda com um espectador que imerge no discurso cinematográfico poético de um realizador por horas a fio? Meus filmes duram menos do que uma série. Mas eu não levo isso muito em questão, pois eu filmo motivado por instintos de criação e pelo desejo político de expor o tamanho das contradições sociais que nos cercam e nos engessam, ao longo da História", diz Lav em Locarno.

Em "Magalhães", Lav recria os últimos meses da vida do explorador português Fernand de Magellan, que morreu nas Filipinas em 1521. O resultado é um retrato íntimo e assustador de um homem confrontado com suas trevas internas. A atuação de Gael em cena é um primor. Igualmente primorosas são as longas tomadas estáticas, repletas de silêncios. Havia a dúvida se ele faria de Magellan um personagem heroico, mas essa suspeita caiu por terra.

"O heroísmo se apresenta na ficção como arquétipo e eu preciso dele, ou seja, preciso de símbolos, pois deles eu extraio um conflito investigativo da condição filipina, sob o trauma do regime colonial. Todo o meu cinema é uma investigação das feridas que a colonização europeia deixou em nós, de modo a entender que identidade nós inventamos pra nós. O cinema é um compromisso com a verdade. O meu cinema é um compromisso com a verdade filipina", disse Lav em sua última passagem por Veneza, em entrevista por e-mail ao Correio.

Fruto de sete anos de pesquisa, "Magalhães" se desenha como um afresco pautado pela meditação. O enredo refaz os últimos meses de Magalhães, envolvido em um confronto fatal com os povos indígenas, até sua passagem pela ilha de Mactan, em abril de 1521.

"A atenção que eu dedico ao tempo é uma forma de refletir sobre a finitude. Não há sentimento de pertença que sobreviva à morte. Células morrem e somos feito delas", disse Lav ao Correio. "Filmo muito por conseguir rodar as minhas fitas a baixo custo, com equipes pequenas, sem perder tempo no set. Cada longa que eu faço custa cerca de 5 milhões de pesos filipinos, o que, na conversão bruta, dá cerca de US$ 90 mil. Existem salas de cinema nas Filipinas, mas elas não exibem o que a gente faz, por estarem tomadas por blockbusters. Por sorte, temos bons festivais", diz Lav. "Retrato habitantes invisíveis que vivem em esferas e reinos esquecidos, como provas vivas de um sistema negligente e de uma cultura muito deslocada, por conta do ranço colonial. Somos fantasmas vivos da História".