Um dos produtores mais prolíficos da Itália neste momento em que seu país luta para se livrar da sombra de seus grandes mestres sem trair a tradição do neorrealismo, Nanni Moretti ajudou a tirar dois filmes do papel nos últimos meses, "Vittoria" e "Quasia a casa", apoiando outros cineastas a forjar uma verve autoral. A sua já soma 50 anos e teve vez na progrmação mais popular do Festival de Cannes, a seção Cinéma De La Plage, com um resgate de um marco de sua estética: "Palombella Rossa", de 1989.
Sua projeção, no último domingo, ampliou o interesse de exibidores e distribuidores do Velho Mundo para incorporar a obra de Moretti em seus catálogos, sobretudo no streaming. Mesmo sendo projetado numa seara de reprises, essa comédia, atualíssima, fez mais barulho na Croisette do que muitas estreias.
"Na minha vida, desde estudante, o cinema sempre simbolizou uma forma de exorcizar aquilo que eu queria combater", disse Moretti, em recente entrevista ao Correio da Manhã na França. "Carrego um apreço grande por Buster Keaton, e seu humor, e tento levar essa verve do deboche para a tela com a certeza de não ser imparcial e de me orgulhar disso".
Laureado com prêmios da crítica em Veneza e na Mostra de São Paulo, "Palombella Rossa" faz rir ao acompanhar um dirigente do Partido Comunista que costuma jogar polo aquático com rapazes mais novos que ele. A história se passa quase que inteiramente numa piscina , que funciona como uma metáfora da vida em sociedade. O humor bizarro de Moretti, também protagonista do filme, pode ser considerado um tributo à ironia histórica da Itália na arte cinematográfica.
"Muita coisa mudou no mundo nesse período, sobretudo a velocidade de consumo de tudo. O sistema já foi um sistema sólido, mas, neste momento, enfrentamos uma fase de desarticulação", disse Moretti, que ganhou a Palma de Ouro, em 2001, com "O Quarto do Filho".
Na década de 1980, quando a tradição de excelência da indústria cinematográfica italiana entrou em sucateamento, filmes como "Bianca" (1983) e "A Missa Acabou" (1985) fizeram dele um pilar de resistência. Ao longo das décadas seguintes, "Caro Diário" (1993), "Aprile" (1998), "O Crocodilo" (2006) e "Minha Mãe" (2015) expandiram seu prestígio autoral. Daí o impacto do resgate de seu "Palombella Rossa".
"O streaming surgiu hoje com força, e funciona muito bem no sistema produtivo das séries, mas, no campo dos filmes, o papel criativo do diretor não é o que foi. Fui formado por um tipo de narrativa pré-1968 em que cada filme refletia sobre a realidade e sobre o próprio cinema, com Ermano Olmi, Marco Ferreri, os irmãos Taviani, o Free Cinema inglês a Nouvelle Vague. Era um cinema que nos convidava a reagir".
A Itália está entre no certame de Cannes deste ano com "Fuori", de Mario Martone, com Valeria Golino. Em sua trama, a escritora Goliarda Sapienza se encontra na prisão por causa de um delito nunca devidamente comprovado. Após sua libertação, a amizade entre ela e as outras detentas continuou, o que causou desentendimentos nos círculos intelectuais em que ela frequentava.
Cannes termina neste sábado.