Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Eternamente Agnès Varda

'Cléo das 5 às 7' (1962) pode ser visto no streaming pelo Reserva Imovision | Foto: Divulgação

Preparado para receber pedradas (ou montes de areia) ao fim da projeção do .doc "Bardot" (sobre a diva de "E Deus Criou a Mulher") em sua seção Cinéma A La Plage, o 78º Festival de Cannes abre, como pode, os debates feministas em sua grade, a contar com o apoio do mercado livreiro local, que joga luz sobre um pilar das lutas antimachistas em tela grande: a diretora belga Agnès Varda (1928-2019).

Embora não haja nada de sua filmografia em curso nas telas do Palais des Festivals, o livro "Viva Varda!" mobiliza a loja Fnac do balneário e revistarias da vizinhança. Esse tijolaço de 224 páginas, editado por Florence Tissot e publicado pela Martiniere BL, acompanha a primeira exposição retrospectiva da realizadora de "La Pointe Courte" (1955), organizada pela Cinemateca Francesa.

O volume reúne ensaios de especialistas e uma filmografia comentada. O prefácio de Costa-Gavras. O miolo é ilustrado com mais de 300 documentos (arquivos, fotogramas de filmes, fotografias), muitos deles inéditos, extraídos dos arquivos pessoais de Agnès, mantidos pela Ciné-Tamaris, a empresa familiar que ela fundou. A administração da produtora é feita por sua filha, a figurinista Rosalie Varda, e o filho, o ator e diretor Mathieu Demy.

Recentes revisões históricas sugerem que "La Pointe Courte", um drama amoroso, seja o pavimento inicial da Nouvelle Vague, o movimento responsável por modernizar (não só tecnicamente como também na reflexão filosófica) a criação do discurso audiovisual, no fim dos anos 1950.

Em sua trama, um casal em crise retorna ao pequeno vilarejo do título, no qual Lui, o marido (Philippe Noiret), viveu sua infância. Regressar ao berço pode ser um meio de reaver o carinho de sua parceira, Elle (Silvia Monfort). No local, os dois vivem momentos de reflexão sobre seu relacionamento, ao mesmo tempo em que o cotidiano dos moradores flui ao seu redor. É uma cartografia de vivências feita sob uma ótica que o cinema desconhecia até então. Ali, o vulcão Varda entrou em erupção, gerando joias como "O Amor dos Leões" (1969).

Neste momento em a falta de equidade salarial entre gêneros, oriunda do sexismo, torna-se uma das pautas centrais do cinema, dentro e fora das telas, Agnès segue eterna, como um farol para iluminar novas estratégias de afirmação das potências femininas. Cada parágrafo de "Viva Varda!" revolve tal discussão, amplifica aqui após a projeção do filme de abertura do festival, "Partir Un Jour", de Amélie Bonnin, que discute o direito que uma mulher tem sobre seu próprio ventre.

Macaque in the trees
A realizadora Agnès Varda dirigiu 60 produções | Foto: Gerhard Kassner/Berlinale

Varda saiu de cena há seis anos, após uma batalha contra um câncer no seio. Morreu um mês depois de lançar seu último longa, o ensaio documental "Varda por Agnès" (2019) no Festival de Berlim, numa cerimônia onde conquistou o troféu honorário Berlinale Camera pelo conjunto de sua obra. Esse canto de cisne dela pode ser visto no streaming Reserva Imovision, assim como "Cléo das 5 às 7" (1962), a ficção mais famosa de sua prolífica obra de 60 títulos.

"Parecia uma maluquice uma garota que nem tinha visto tantos filmes assim se propor a abrir um debate estético numa França onde as vozes masculinas eram preponderantes nos sets, só que eu tinha a ingenuidade e a bravura para fazê-lo", disse Agnès na Berlinale.

A artista visual morreu aos 90 anos, lutando de modo sereno contra seu tumor, sem abrir mão do trabalho. Pioneira da modernização política e narrativa da produção audiovisual, a diretora de "As duas Faces da Felicidade" (Prêmio Especial do Júri no Festival de Berlim de 1965) e "Os Renegados" (Leão de Ouro em Veneza, em 1985). Nasceu Arlette Varda, mas mudou legalmente seu nome aos 18 anos. Ela tinha em seu currículo um Oscar honorário e uma Palma de Ouro de Honra ao Mérito. Ganhou notoriedade numa época revolucionária, na qual ela foi casada com o mestre europeu dos musicais Jacques Demy (1931-1990), realizador de "Os Guarda-Chuvas Do Amor" (Palma de Ouro de 1964). Viveu com ele de 1962 até a morte do diretor.

"Minha mãe passou os últimos 15 anos dedicada às artes visuais, explorando um formato de instalação em vídeo. Pouca gente conhece a fundo o que ela fez nesse período. Assim como poucos jovens de hoje conhecem os filmes que Demy rodou. O legado deles precisa seguir adiante e ser prestigiado pelas novas gerações", disse Rosalie ao Correio da Manhã em recente entrevista em Paris.