Preparado para receber pedradas (ou montes de areia) ao fim da projeção do .doc "Bardot" (sobre a diva de "E Deus Criou a Mulher") em sua seção Cinéma A La Plage, o 78º Festival de Cannes abre, como pode, os debates feministas em sua grade, a contar com o apoio do mercado livreiro local, que joga luz sobre um pilar das lutas antimachistas em tela grande: a diretora belga Agnès Varda (1928-2019).
Embora não haja nada de sua filmografia em curso nas telas do Palais des Festivals, o livro "Viva Varda!" mobiliza a loja Fnac do balneário e revistarias da vizinhança. Esse tijolaço de 224 páginas, editado por Florence Tissot e publicado pela Martiniere BL, acompanha a primeira exposição retrospectiva da realizadora de "La Pointe Courte" (1955), organizada pela Cinemateca Francesa.
O volume reúne ensaios de especialistas e uma filmografia comentada. O prefácio de Costa-Gavras. O miolo é ilustrado com mais de 300 documentos (arquivos, fotogramas de filmes, fotografias), muitos deles inéditos, extraídos dos arquivos pessoais de Agnès, mantidos pela Ciné-Tamaris, a empresa familiar que ela fundou. A administração da produtora é feita por sua filha, a figurinista Rosalie Varda, e o filho, o ator e diretor Mathieu Demy.
Recentes revisões históricas sugerem que "La Pointe Courte", um drama amoroso, seja o pavimento inicial da Nouvelle Vague, o movimento responsável por modernizar (não só tecnicamente como também na reflexão filosófica) a criação do discurso audiovisual, no fim dos anos 1950.
Em sua trama, um casal em crise retorna ao pequeno vilarejo do título, no qual Lui, o marido (Philippe Noiret), viveu sua infância. Regressar ao berço pode ser um meio de reaver o carinho de sua parceira, Elle (Silvia Monfort). No local, os dois vivem momentos de reflexão sobre seu relacionamento, ao mesmo tempo em que o cotidiano dos moradores flui ao seu redor. É uma cartografia de vivências feita sob uma ótica que o cinema desconhecia até então. Ali, o vulcão Varda entrou em erupção, gerando joias como "O Amor dos Leões" (1969).
Neste momento em a falta de equidade salarial entre gêneros, oriunda do sexismo, torna-se uma das pautas centrais do cinema, dentro e fora das telas, Agnès segue eterna, como um farol para iluminar novas estratégias de afirmação das potências femininas. Cada parágrafo de "Viva Varda!" revolve tal discussão, amplifica aqui após a projeção do filme de abertura do festival, "Partir Un Jour", de Amélie Bonnin, que discute o direito que uma mulher tem sobre seu próprio ventre.
Varda saiu de cena há seis anos, após uma batalha contra um câncer no seio. Morreu um mês depois de lançar seu último longa, o ensaio documental "Varda por Agnès" (2019) no Festival de Berlim, numa cerimônia onde conquistou o troféu honorário Berlinale Camera pelo conjunto de sua obra. Esse canto de cisne dela pode ser visto no streaming Reserva Imovision, assim como "Cléo das 5 às 7" (1962), a ficção mais famosa de sua prolífica obra de 60 títulos.
"Parecia uma maluquice uma garota que nem tinha visto tantos filmes assim se propor a abrir um debate estético numa França onde as vozes masculinas eram preponderantes nos sets, só que eu tinha a ingenuidade e a bravura para fazê-lo", disse Agnès na Berlinale.
A artista visual morreu aos 90 anos, lutando de modo sereno contra seu tumor, sem abrir mão do trabalho. Pioneira da modernização política e narrativa da produção audiovisual, a diretora de "As duas Faces da Felicidade" (Prêmio Especial do Júri no Festival de Berlim de 1965) e "Os Renegados" (Leão de Ouro em Veneza, em 1985). Nasceu Arlette Varda, mas mudou legalmente seu nome aos 18 anos. Ela tinha em seu currículo um Oscar honorário e uma Palma de Ouro de Honra ao Mérito. Ganhou notoriedade numa época revolucionária, na qual ela foi casada com o mestre europeu dos musicais Jacques Demy (1931-1990), realizador de "Os Guarda-Chuvas Do Amor" (Palma de Ouro de 1964). Viveu com ele de 1962 até a morte do diretor.
"Minha mãe passou os últimos 15 anos dedicada às artes visuais, explorando um formato de instalação em vídeo. Pouca gente conhece a fundo o que ela fez nesse período. Assim como poucos jovens de hoje conhecem os filmes que Demy rodou. O legado deles precisa seguir adiante e ser prestigiado pelas novas gerações", disse Rosalie ao Correio da Manhã em recente entrevista em Paris.