Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Evangelho de guerra por Terrence Malick

Bastidores das filmagens do épico filosófico 'The Way of the Wind', a vida de Jesus na ótica de Terrence Malick | Foto: Divulgação

 

Tratado pacifista coroado com o Prêmio do Júri Ecumênico de Cannes em 2019, "Uma Vida Oculta" ("A hidden life"), de Terrence Malick, retornou ao festival francês este ano para uma consagradora projeção na abertura da seção Cinéma De La Plage, com exibições nas areias (lotadas) da Croisette. Sua escalação funciona como um consolo para o evento, que ansiava (e muito) pelo novo longa-metragem do diretor americano, "The Way Of The Wind", sobre a vida de Jesus Cristo. Faz tempo que a maratona cinéfila da França anseia pela volta de Malick, que ganhou a Palma de Ouro em 2011 com "A Árvore da Vida", coroada por um júri presidido por Robert De Niro. No entanto, a mirada filosófica do octogenário cineasta para o calvário do filho do Homem parece não ficar pronta nunca.

O pouco que sabe sobre "The Way Of The Wind" é o fato de seu roteiro abordar as pregações de Jesus da crucificação à Páscoa. O húngaro Géza Röhrig é quem vive o Salvador. As filmagens tiveram locações na Turquia. Mark Rylance é um dos destaques do elenco no papel de Satã. Malick conta ainda com o maciste belga Matthias Schoenaerts no papel do fundador da Igreja, o apóstolo Pedro. Joseph Fiennes, Ben Kingsley e Franz Rogowsky estão no elenco. A fotografia é de Jörg Widmer, que foi operador de câmera em vários longas do cineasta, inclusive "Uma Vida Oculta", que foi aclamado uma vez mais.

Após uma safra de filmes recentes de linha messiânica, calcados em seus estudos da filosofia transcendentalista, como "Amor Pleno" (2012), o veterano realizador nascido em Illinois aplica seus ensaios sobre fé no contexto da II Guerra Mundial. A aparição do mítico ator suíço Bruno Ganz (1941-2019), num momento crucial da trama, foi saudada na primeira sessão pública do longa, em Cannes, com apupos de respeito, numa salva de aplausos. Em seu trabalho de realiação, o mais sóbrio e contundente desde "Além da Linha Vermelha" (Urso de Ouro em 1999), Malick recria, com uma potência plástica singular a saga do fazendeiro austríaco Franz Jägertätter, que se recusou a lutar em prol dos nazistas. O personagem alcança excelência audiovisual graças ao fino desempenho de August Diehl (de "O Jovem Karl Marx") no papel central. Merece destaque a impecável interpretação de Valerie Pachner no papel de sua dedicada companheira, Fani.

Em novembro, Malick chegou aos 81 anos mudado, mais aberto aos holofotes, de flerte com o pop. Há 13 anos, quando conquistou a Palma de Ouro de Cannes com "A Árvore da Vida", ele nem foi ao palco do Palais des Festivals da Croisette para receber seu troféu. No máximo, jantou com os diretores artísticos do evento, pois viveu umas quatro décadas com aversão a fotografias, badalação, redes sociais. Sua realidade agora é outra. Ele até lançou na web um comercial... uma campanha publicitária... para a grife Louis Vuitton. O vídeo "Towards a Dream in USA", é mais uma experiência narrativa com ares documentais filosóficos de cinema road movie do que um reclame institucional padrão. Mesmo assim, é uma virada em sua aclamada carreira, iniciada em 1969.

É possível conferir "A Árvore da Vida" hoje na grade da MUBI. Cultuado, o filme arrecadou US$ 58 milhões pelo mundo afora, em paralelo à indicação do realizador (um ermitão avesso a fotos e aparições públicas) ao Oscar de melhor direção de 2012. Existe uma segunda versão, director's cut, ainda maior do que a metragem vista em solo cannoise, em 2011, com 2h20, exibida no Festival de Veneza, em 2018, com 188 minutos.

Em 1978, Malick concorreu à Palma de Cannes com "Cinzas no Paraíso", que lhe garantiu o prêmio de Melhor Direção. Depois de seu lancamento, entrou num hiato, debruçando-se sobre a carreira de professor de Filosofia, e só voltou a filmar duas décadas depois.

O Festival de Cannes segue até o dia 24, quando o júri presidido pela francesa Juliette Binoche anuncia os vencedores.