Dedicado hoje ao projeto "Fever", uma cinebiografia da cantora Peggy Lee (1920-2002), com Michelle Williams no papel central, o diretor Todd Haynes há de guardar 2025 num cantinho especial do peito pelo tanto de prestígio acumulado em apenas cinco meses. Em fevereiro, ele assumiu a presidência do júri da Berlinale, fazendo jus a sua luta pela comunidade queer ao entregar o Urso de Ouro à historia de amor (entre mulheres) de CEP norueguês "Dreams (Sex Love)" by Dag Johan Haugerud.
Na quarta, foi a vez de ser aclamado no Festival de Cannes, na abertura da Quinzena de Cineastas, onde foi buscar o prêmio honorário desse evento: o troféu Carroça de Ouro. Organizadora desse tributo, La Société des Réalisatrices et Réalisateurs de Films (SFR) premiou em anos recentes as vozes autorais de peso, como Andrea Arnold, Souleymane Cissé, Kelly Reichardt, Frederick Wiseman, Martin Scorsese e Werner Herzog. Haynes foi escolhido por alargar as verves experimentais da imagem em seus filmes, como "Veneno" (1991) e "Longe do Paraíso" (2002).
"Venho de um universo criativo que passou a se expressar com o boom da Aids, buscando reagir o que vivíamos, e, até hoje, o cinema indie abre avenidas para vozes serem ouvidas", disse Haynes ao Correio da Manhã em Berlim.
Aos 64 anos, o cineasta americano chegou à Berlinale carregando uma perda profissional nos ombros. Em agosto de 2024, teve um longa adiado (quiçá cancelado), às vésperas de iniciar suas filmagens, em decorrência da perda de seu protagonista, Joaquin Phoenix. O astro recusou-se a seguir com o compromisso firmado com o realizador de "Velvet Goldmine" (1998), sem tornar públicas suas justificativas. Tomou bordoada de todo o lado pela opção de abandonar a empreitada - um roteiro centrado numa paixão entre dois homens - que dependia de seu star quality para sair do papel. Haynes jamais apropriou-se de seu posto no festival alemão para criticar o caso. Só atacou Trump.
"Nalgum momento, seu eleitorado vai se dar conta do que fez", ironizou, antes de fazer uma reflexão das escolhas narrativas que o levaram a ganhar a Carroça de Ouro de Cannes na quarta. "O mestre alemão Rainer Werner Fassbinder dizia que um melodrama precisa de falsos finais felizes como forma de levar a plateia a entender o que se passa nos entornos da vida de suas personagens. Talvez por isso, o cinema que eu faço tenta mirar a sociedade e suas dinâmicas moralistas nas brechas em que a lente da câmera não está centrada nas protagonistas", disse Haynes ao Correio da Manhã, em entrevista na Espanha, quando lançada "Segredos de um Escândalo" ("May December"), hoje no Prime Video da Amazon.
Em dezembro, esse drama devastador sobre desejos e projeções de identidade figurou numa das listas de maior prestígio do audiovisual: a enquete anual de 10 Mais da revista francesa "Cahiers du Cinéma". A equipe crítica do periódico elegeu "Segredos de um Escândalo" como o segundo melhor filme de 2024 - o n° 1 foi "Misericórdia", de Alain Giraudie. Estrelado por Natalie Portman e Julianne Moore, o longa concorreu ao Oscar de Melhor Roteiro Original (escrito por Samy Burch e Alex Mechanik).
"Foi Natalie que trouxe o enredo de 'May December' para mim, brigando por um roteiro que fala sobre o desconforto que as presunções morais trazem", explicou Haynes, num papo em que encheu de elogios o montador paulista Affonso Gonçalves, editor habitual de seus filmes e da minissérie "Mildred Pierce" (2011), também no ar na Prime Video. "Affonso é uma pedra fundamental na minha criação. Eu sou ruim de olhar o copião do que rodo, sobretudo quando ainda estou filmando, e entrego a ele a tarefa de me propor uma versão inicial do material bruto. Ele sempre me sai com ideias provocativas".
Foi Affonso quem montou "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, hoje candidato a três Oscars: Melhor Filme Internacional, Melhor Atriz (Fernanda Torres) e Melhor Filme. Ás da montagem, o editor contou ao "Correio da Manhã" que Haynes lhe oferece trocas profundas na concepção de seus trabalhos. Em "Segredos de um Escândalo", eles vão às profundezas da hipocrisia dos EUA. Concorrente à Palma de Ouro de Cannes de 2023, a produção de US$ 20 milhões narra o empenho de uma atriz, Elizabeth (papel de Portman), para encenar a conflituosa vida da vendedora Gracie (Julianne) que teve um caso com um adolescente 30 anos mais moço na loja de ração onde trabalhava. Ela acabou por se casar com o menino que, hoje, adulto (vivido com esplendor por Charles Melton), repensa as escolhas de seu passado.
"Inseguranças são sempre perigosas, sobretudo em circunstâncias excepcionais como a desse episódio, que expõe a perda da inocência", disse Haynes ao Correio, lembrando que a trilha sonora do longa é do brasileiro Marcelo Zarvos. "Editamos o filme ao som da música dele".
Na Amazon Prime, é possível encontrar outros experimentos narrativos de Haynes pouco falados: "Sem Fôlego" (2017) e "O Preço da Verdade" (2019), que também está na Netflix. Sempre atenta ao realizador, a MUBI incluiu em sua grade o festejado "Carol" (2015), que rendeu a Rooney Mara o prêmio de Melhor Interpretação Feminina no Festival de Cannes.
"Com 'Carol', eu falei do querer sem me apegar às referências clássica de Hollywood no folhetim", disse Haynes na Croisette.
Cannes segue até o dia 24, quando o júri presidido pela atriz Juliette Binoche vai anunciar o ganhador da Palma de Ouro. O Brasil vai à caça dela com "O Agente Secreto", do pernambucano Kleber Mendonça Filho. O astro de "Narcos" encarna Marcelo, um especialista em tecnologia que foge de um passado misterioso e volta ao Recife em busca de paz. Ele logo percebe que a cidade está longe de ser o refúgio que procura. Ao lado de Wagner estão Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Hermila Guedes, Thomás Aquino, Alice Carvalho, Edilson Filho e o alemão Udo Kier. O filme é uma coprodução Brasil (CinemaScópio Produções), França (MK Productions), Holanda (Lemming) e Alemanha (One Two Films) e terá distribuição no Brasil da Vitrine Filmes.
Pátria homenageada do Marché du Film (a ala de negócios de Cannes) este ano, o Brasil terá vez ainda na seção Classics do festival com "Para Vigo Me Voy!", um documentário sobre Cacá Diegues (1940-2025) dirigido por Karen Harley e Lírio Ferreira. Disputa ainda o prêmio das curtas da Semana da Crítica com "Samba Infinito", de Leonardo Martinelli. Na Un Certain Regard, há uma coprodução da brasileira Tatiana Leite com Portugal, "O Riso e a Faca", de Pedro Pinho. Há ainda a presença do cineasta Marcelo Caetano no júri da Queer Palm de 2025.