Esquadras portuguesas singraram gloriosas os mares da Côte D'Azur, em 2024, e asseguraram à "terrinha" a láurea de Melhor Direção do último Festival de Cannes para o experimento em PB "Grand Tour", de Miguel Gomes, hoje na grade na MUBI, o que ampliou a fome dos patrícios pelos prêmios da Croisette. Este ano, o audiovisual luso volta a cobiçar os mimos do balneário francês, disputando o Prix Un Certain Regard de 2025 com "O Riso e a Faca", dirigido pelo lisboeta Pedro Pinho e coproduzido pela Bubbles Project, de Tatiana Leite, do Brasil, a mesma de "Puan" (2023) e "Regra 34" (2022).
A sessão no evento acontece neste sábado. A expressão que batiza o longa-metragem evoca uma canção composta e interpretada pelo baiano Tom Zé. Em solo cannoise, Pinho é sortudo. Saiu de lá coroado com o Prêmio da Crítica, dado pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci) por "A Fábrica de Nada", em projeção no streaming Reserva Imovision. Seu regresso ao certame da maratona cinéfila de maior prestígio do mundo impulsiona o interesse por seu êxito passado.
Ao mesmo tempo, há forte interesse por "O Riso e a Faca". A trama acompanha o engenheiro ambiental Sérgio, português que viaja para uma metrópole na África Ocidental onde vai trabalhar num projeto rodoviário entre o deserto e a selva. Lá, ele desenvolve um relacionamento íntimo com dois moradores da cidade, Diára e Gui. No trio de protagonistas, está o brasileiro Jonathan Guilherme, ex-atleta de vôlei que trocou as quadras pela arte e hoje é poeta em Barcelona, na Espanha, onde mora. Ele dá vida ao personagem Gui e contracena com a cabo-verdiana Cleo Diára, de "Diamantino" (2018), e o português Sérgio Coragem, conhecido por seus papéis em "Verão Danado" (2017) e "Fogo-Fátuo" (2022).
Ativista da causa da perplexidade ética, Pinho construiu "A Fábrica de Nada" ciente de nossa orfandade em relação à falência dos (meta) discursos políticos que outrora explicavam e confortavam o mundo, como o marxismo, o anarquismo, e até o socialismo cristão. Fez um filme para expor o quanto somos órfãos, mas numa abordagem um tanto analgésica, que nos alumbra. O diretor costura números musicais com trechos documentais e situações cômicas quase caricatas com dramas realistas. Essa mistura é das mais radicais - e, ao mesmo tempo, das mais harmônicas - que o cinema contemporâneo já viu, sobretudo em língua portuguesa. Tudo neste filmaço lusitado é registrado numa fotografia esmaecida, na qual a câmera de Vasco Viana rejeita excessos de cor e luz. Tudo está esgotado, como o mundo. Existe um mote: a demolição da lógica fabril herdada dos 1800 e, até hoje, vigente, como um zumbi da História. Existe uma trama: um grupo de operários se encrespa com a administração de uma indústria de elevadores, ao flagrar a gerência está roubando máquinas e matérias-primas, e fazem um levante que tem um ônus - todos serão obrigados a permanecer em seus postos, no ócio, até as negociações para demissão coletiva saírem. José Smith Vargas encarna o mais combativo desses trabalhadores. Entre eles, existe uma vivência de dor.
Explicitado esse enredo, as tensões geram invenções, desde coreografias dos trabalhadores até digressões de teóricos. E, a um dado momento, brota uma frase romântica - "O filho da p... do amor, se for mesmo amor, é incondicional" - provando estarmos diante de um olhar terno sobre pessoas, e não de uma tese sociológica. E a montagem primorosa galvaniza a poética de alarmismo de Pinho.
No domingo, Cannes confere "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho, na competição oficial. Nesta quarta, a pedida do dia é a projeção do novo "Missão: Impossível", com Tom Cruise em sequências de perigo vertiginosas.