Aos 45 minutos do segundo tempo do encerramento de sua programação 2025, o Festival de Cannes cavou uma vaga para promover um colóquio de um multiartista mexicano que fez da fantasia seu gabinete de curiosidades: o diretor mexicano Guillermo Del Toro. Neste domingo, o artesão autoral ganhador do Leão de Ouro e do Oscar de Melhor Realização por "A Forma da Água" (2017) tem uma palestra com o maestro e compositor francês Alexandre Desplat, hoje a grife de maior ascensão do audiovisual quando o assunto é trilha sonora.
Os dois desenvolvem atualmente uma nova versão de "Frankenstein", com Jacob Elordi no papel do monstro criado na literatura por Mary Shelley (1797-1851). Oscar Isaac encarna o professor que dá vida a uma criatura feita de restos humanos e eletricidade. Hoje com 60 anos, Del Toro só concorreu à Palma de Ouro uma vez, em 2006, com "O Labirinto do Fauno", mas esteve na Croisette antes, em 1993 com "Cronos", na Semana da Crítica. Volta agora com a proposta de falar de música. O que se espera dele, no entanto, é uma fala sobre bestas.
"Gente fina, do tipo bonzinho não me interessa, pois eu cresci cercado de fábulas em que pessoas difíceis, de perfil torto, saem em uma jornada de autodescoberta. Eu me interesso por pessoas que precisam se tornar boas para serem amadas", explicou Del Toro ao Correio em entrevista no Festival de Marrakech, no Marrocos, quando "Frankenstein" já era uma aurora em seus horizontes.
Volta por cima
Seu último sucesso, "Pinóquio", ganhador do Oscar de Melhor Longa de Animação em 2023 e dirigido em duo com Mark Gustafson, também teve Desplat na equipe. Será um dos temas de eixo da conversa dele em Cannes. Ninguém deve abordar seus fiascos no papo no balneário. Del Toro naufragou nas bilheterias em 2021 com "O Beco do Pesadelo", um noir que custou US$ 60 milhões para sair do papel e só faturou US$ 39 milhões. Apesar disso, ele deu a volta por cima e manteve sua origem - de Guadalajara – sempre no centro de suas entrevistas.
"Nossa origem latina foi, por muito tempo, tratada na indústria como algo folclórico. Há mais de uma década, eu li um verbete sobre o meu conterrâneo Alfonso Cuarón, escrito pelo crítico David Denby, mais ou menos assim: 'Alfonso é um cineasta mexicano consagrado por 'E sua mãe também' que vai filmar um longa da franquia 'Harry Potter'. Se ele se sair bem nessa, nunca mais filmará à mexicana, pois será tragado pela indústria'. O tempo passou, Alfonso ganhou o Oscar pela direção de 'Gravidade', foi cercado por milhões dólares por todos os lados e, apesar deles, foi ao México filmar uma trama intimista, sobre uma empregada doméstica de origem indígena, baseado em sua própria história com sua babá. A gente não deve ser o que o mercado diz. A expressão de um artista é a liberdade. Queria muito filmar a saga de Pinóquio. Mas só concordei em fazê-lo se fosse do meu modo, nas minhas regras", disse Del Toro ao Correio da Manhã quando o projeto sobre o menino de madeira começou a ser gestado, em 2018, durante uma passagem do realizador por Marrakech.
Na ocasião, Del Toro estava quase desistindo de filmar "Pinóquio", por não encontrar meios. Na época, o italiano Matteo Garrone estava filmando a mesma trama, com Roberto Benigni, mas a Netflix apareceu e ofereceu a ele meios de filmar, bancando um elenco estelar, com Tilda Swinton, Christoph Waltz e John Turturro. O diretor estava às voltas com um projeto da DC Comics, sobre o universo dos super-heróis, quando o apoio do streaming veio.
É autoralíssima a releitura do realizador de "Hellboy" (2004) para o livro "Pinocchio" (1883), de Carlo Collodi Lorenzini (1826-1890) e Enrico Mazzanti (1850-1910), hoje na grade da Netflix com enorme sucesso. O que se vê é um desbunde. É musical, é aventura... tudo em stop motion (a técnica de "Fuga das Galinhas", na qual objetos são animados quadro a quadro, aparentando movimento). Tudo em cena tem o rastro autoral funéreo e sóbrio de Del Toro. A direção de arte tem visual amadeirado, em sintonia com seu protagonista, um boneco de pau que ganha vida. E é uma direção que foge totalmente de qualquer marca em comum com o desenho animado da Disney de 1940.
"Sou um peixinho no meu aquário, trabalhando com a certeza de que sucesso e fracasso são vizinhos", avisou Del Toro a Marrakech. "A questão é que nunca saberemos atrás de que porta está cada um deles".