Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Cacá (para sempre) do Brasil

Cacá Diegues no set de filmagens de 'Deus Ainda é Brasileiro' | Foto: Gabriel Moreira/Divulgação

 

Enquanto o cinema brasileiro espera para ver "Deus Ainda É Brasileiro", o canto de cisne ainda em finalização de Cacá Diegues (1940-2025), que nos deixou em fevereiro, o Festival de Cannes acolhe em sua seção Classics um documentário de Karen Harley e Lírio Ferreira sobre o diretor alagoano sob o título "Para Vigo Me Voy". A maratona francesa, agendada de 13 a 24 de maio, presta um tributo ao realizador que fez do nosso povo o objeto de sua poética.

É um documentário que explora seu legado estruturado sobre a estrutura filosófica de atenção às urgências do país: "Fiz tudo o que eu pude para ser um cineasta de meu tempo, atento às dissonâncias e às belezas situacionais de nossa História, fazendo aquilo que podia interessar a mim e aos outros no momento em que filmo, em sintonia com os avanços tecnológicos do audiovisual e com as diferentes plataformas existentes. Nunca tive nenhuma nostalgia do passado, nem acalentei o desejo de enviar mensagens ao futuro. Sou um cineasta do presente e vivo o agora, esforçando-me ao máximo para transformar o que vejo em algo melhor, que nos convide à esperança", disse o realizador, em uma de suas últimas entrevistas ao Correio da Manhã.

Há 50 anos, ele engatou a produção de seu maior êxito de bilheteria, "Xica da Silva", que estreou em 1976, vendendo 3.183.582 ingressos. Ganhou os Candangos de Melhor Filme e Direção no Festival de Brasília à força de um debate sobre empoderamento feminino e luta decolonial, duas das marcas do cineasta e cronista. Marcas estas que Karen e Lírio (hoje em circuito com o thriller "Serra das Almas") exploram.

A trajetória artística de Cacá se amalgama com o histórico do Brasil na Croisette, onde foi jurado três vezes, avaliando longas (em 1981), curtas (em 2010) e os concorrentes ao troféu Caméra d'Or (2012). Sempre foi tratado como um misto de artesão da imagem e pensador, à força de sua escrita ensaística.

Esteve em Cannes pela primeira vez em 1964, na Semana da Crítica, com "Ganga Zumba", seu longa de estreia. Sua passagem final pela seleção oficial do evento se deu em 2018, com "O Grande Circo Místico". No mesmo ano, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL).

Concorreu três vezes à Palma de Ouro. A primeira vez foi em 1980, com "Bye Bye Brasil", um clássico nacional visto por 1.488.812 pagantes e hoje disponível no Globoplay. O longa voltou a Cannes no ano passado, numa homenagem à produtora LC Barreto. Na trama, o sanfoneiro Ciço (Fábio Jr.) e a mulher, Dasdô (Zaira Zambelli), que está grávida, são surpreendidos pelo encontro com a Caravana Rolidei, um circo sobre rodas. A companhia itinerante é formada pelo mágico Lorde Cigano (José Wilker), a dançarina Salomé (Betty Faria) e o Rei dos Músculos, Andorinha (Príncipe Nabor). Ciço, apaixonado por Salomé, decide acompanha-los pelo país adentro, arrastando Dasdô, que tem seu parto feito de improviso por Cigano, recebendo uma bebezinha, Altamira.

Prestigiado ainda na Croisette pela Quinzena de Cineastas de 1978, onde exibiu "Chuvas de Verão", Cacá concorreu às láureas da Côte d'Azur em 1984, com "Quilombo", e em 1987, com "Um Trem Para As Estrelas". Em 2010, ele e sua companheira, Renata Almeida Magalhães, voltaram a Cannes, no dia em que ele completou 70 anos (19 de maio), para exibir "5xFavela: Agora Por Nós Mesmos", que ele produziu.

Há três anos, em meio à Copa do Mundo de 2022, o Correio visitou os sets de filmagem de "Deus Ainda É Brasileiro", em Alagoas, onde Cacá explicou o projeto, que continua as aventuras do Todo-Poderoso retratadas por ele numa comédia metafísica de 2003, vista por 1,6 milhão de espectadores. "Não se trata de uma comédia pura e simples, no sentido de fazer rir despropositadamente. Eu diria que este filme é uma comédia humanista, uma crónica do que está diante de nossos olhos e, ao mesmo tempo, que nos faz rir, nos indicando caminhos mais adequados nesse momento difícil do Brasil e da humanidade", disse o realizador.

Num projeto 100% alagoano, Cacá repensa o existencialismo de Deus (Fagundes). O Divino não conta mais com o seu guia, Taoca (papel de Wagner Moura). Ele regressa à Terra no dia do velório do seu amigo, chegando ao planeta com o intuito de acabar com tudo, insatisfeito com os rumos da Humanidade. Passa até por uma reunião celestial para decidir o que será de nós. Mas ao matar as saudades da sua amiga Madá (Ivana Iza, atriz e documentarista de Alagoas que assume o papel outrora encarnado por Paloma Duarte) e conhecer a jovem Linda (Laila Vieira), o Criador começa a repensar seus afetos.

"Reencontrar Fagundes no set é sempre um prazer, pois ele é um ator que me dá espaço para debater a arte, o país. Ele é uma das únicas vozes desse elenco que não é de Alagoas. Tem ele, o Bruce Gomlevsky e o Otávio Müller, que têm grandes ligações com o teatro e são grandes atores. É um filme para entender que país a gente é hoje", disse Cacá.

Cannes há de honrar sua relevância para a representação da América Latina nas telas.