Por: Rodrigo Fonseca  | Especial para o Correio da Manhã

'Limpe o assoalho, Daniel San'

Os mestres Han (Jackie Chan) e LaRusso (Ralph Macchio) treinam o menino Li (Ben Wang) | Foto: Sony Pictures

A poucos dias de chegar às telas, "Karate Kid: Lendas" ganhou holofotes com a notícia de que o astro Jackie Chan, um dos protagonistas do longa-metragem, será homenageado com o Pardo ala Carriera, o troféu honorário do Festival de Locarno, na Suíça, que realiza sua edição nº 78 de 6 a 16 de agosto. Até lá, o filme, que entra em cartaz neste fim de semana, terá cumprido sua vocação para arrecadar milhões, alimentado pelo apoio (na Netflix) da série "Cobra Kai", que atualizou uma mítica hollywoodiana na retomada de um legado lá da década de 1980.

Estima-se que a produção dirigida por Jonathan Entwistle ("I Am Not Okay With This"), com foco no treino de um carateca, possa amealhar fortunas. A ambição maior é vê-lo preservar uma grife milionária e trazer de volta um signo de autoralidade.

Deleite da "Sessão da Tarde" nos anos 1980 e 90, apoiado numa dublagem antológica, "Karate Kid - A Hora da Verdade" (1984) carregou as marcas autorais de um injustiçado ganhador do Oscar, John G. Avildsen (1935-2017), o diretor que inaugurou a saga de Rocky Balboa em 1976. Seu legado nunca foi devidamente respeitado pela crítica, apesar da relevância de sua obra na revitalização política da Hollywood dos anos 1970 e na trilha nerd que o cinemão dos Estados Unidos tomou na década de 1980.

Ganhou apenas um documentário, "King of Underdogs" (2017), de Derek Wayne Johnson, que festeja seus feitos. Um deles foi transformar Daniel LaRusso (o adolescente que, depois de espancado por lutadores, torna-se um ás do tatame) num ícone do pop, fazendo de seu intérprete, Ralph George Macchio Jr. (hoje com 63 anos), uma celebridade juvenil. Ele volta em "Lendas", ao lado de Chan, que interpreta o Sr. Han. Ainda mais célebre do que Macchio ficou Noriyuki "Pat" Morita (1932-2005), na pele do Sr. Miyagi, zelador que dominava todos os preceitos das artes marciais.

O longa original custou US$ 8 milhões e faturou uma baba (US$ 130 milhões), além de conquistar a indicação à estatueta de Melhor Coadjuvante na festa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, numa coroação do desempenho de Pat. Avildsen rodou duas sequências, uma (brilhante) em 1986 e outra (descartável) em 1989. Nesse mesmo ano, a DIC Entertainment, a produtora Saban e a Columbia Pictures Television realizaram uma série animada de LaRusso e Miyagi, que passou aqui no "Xou da Xuxa". Um quarto filme, com Hilary Swank, foi lançado em 1994, com direção de Christopher Cain, mas fracassou fragorosamente.

Em 2010, a Sony decidiu ressuscitá-la, com o cineasta Harald Zwart no comando, responsável por reciclar a premissa do jovem que, depois de virar saco de pancada, ganha a tutoria de um bamba das lutas e encarar seus detratores numa competição. O enredo foi deslocado para a China e, no lugar de LaRusso, entrou Dre Parker, vivido por Jaden Smith. Seu sensei é Han, um personagem amargurado por perdas familiares que renovou o prestígio de Chan. O astro, que nasceu em Hong Kong há 71 anos, é produtor e diretor e ganhou um Oscar Honorário em 2017.

"Jackie Chan devotou sua vida inteira ao cinema e é o único artista que entendeu a expressão cinemática dos gênios da Era Muda das telas (como Charlie Chaplin, Buster Keaton, Harold Lloyd, Stan Laurel, Oliver Hardy) e a trouxe para uma dimensão contemporânea. As pessoas tentam engaveta-lo no nicho do kung-fu, mas essa é só uma pequena parte de sua história", diz o crítico Giona A. Nazzaro, o curador responsável pela revitalização de Locarno. "Chan treinou intensamente desde menino para se tornar o que é hoje. Foi submetido a um incansável treinamento, como ator mirim, não só de artes marciais, como das artes circenses e da ópera, aprendendo a cantar. Todos os elementos da formação dos showmen chineses, ligados ao teatro, aparecem no olhar de Chan. Ele encarna o sentido do movimento que está na base do cinema".

Dublador brasileiro do Sr. Han, Marco Ribeiro concorda com a análise de Nazzaro, ao falar do processo de adaptar as falas de Chan para o Português:

"O maior desafio é dublar um ator tão versátil, mantendo um sotaque que foi guiado por uma coach nativa em Mandarim, e manter a consistência nesse sotaque, sem ficar caricato. O maior prazer desse trabalho é dublar um ator de que eu gosto muito e de que sou fã desde muito tempo, podendo dar ao público uma dublagem verdadeira, feita com carinho e qualidade".

Na trama de "Lendas", LaRusso (Macchio), conhecido entre nós como Daniel San, chega em Pequim, onde o Sr. Han está procurando por ele, para ajudar no treino de um novo protegido, Li Fong (papel de Bem Wang). Os dois mentores devem colaborar para instruir Li Fong, mas resta saber se suas abordagens educacionais serão compatíveis. Em "Cobra Kai", o modo de LaRusso tratar o caratê destoa de seu antigo algoz, Johnny Lawrence, papel que deu fama a William Zabka. Na série, Nizo Neto é quem dubla Macchio. No longa, também.

"Com certeza, 'Cobra Kai' está numa posição muito elevada no meu ranking de trabalhos", diz Nizo. "A série é ótima; Ralph, um excelente ator; e a voz, caiu com perfeição. Um prazer muito grande é o carinho dos fãs, que só cresceu com a chegada do longa". No Brasil oitentista, Magalhães Graça (1922-1991) foi a voz Miyagi e imortalizou frases como "Limpe o assoalho, Daniel San".