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Sonhar não tem 'The End'

O documentário 'Criaturas da Mente', de Marcelo Gomes, aborda as pesquisas de Sidarta Ribeiro sobre o sonho | Foto: Sylara Silverio/Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Autor de livros imprescindíveis para o entendimento da expansão da consciência no sono e no despertar, como "O Oráculo da Noite" e "As Flores do Bem", o neurocientista Sidarta Ribeiro vai virar guia de consulta de uma arte que já celebrou o sonhar em expressões autorais de titãs como Tarkovski, Fellini e Kurosawa com a estreia do documentário "Criaturas da Mente". A pesquisa do neurocientista sobre as fronteiras do inconsciente (num trânsito entre a Biologia, a Física, o Candomblé e os saberes indígenas) inspirou um ensaio cinematográfico investigativo no qual o diretor pernambucano Marcelo Gomes revisita seu legado e seus medos. Longa de abre-alas do último Festival de Brasília, a produção da Bretz Filmes estreia nesta quinta-feira na celebração da transdisciplinaridade entre práticas culturais milenares.

"Cinema tem um processo louco, que parece caótico, mas é muito organizado na produção de acasos que, aqui, fazem uma ponte entre biologia e cultura", disse Sidarta, cofundador e professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e integrante do grupo de pesquisa em saúde mental do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz - RJ. "Já tive muito medo dos meus sonhos, pois tive alguns que foram desafiadores, mas, hoje, o maior medo que associo a essa matéria é não me lembrar do que sonhei. A gente consegue preservar a lembrança intencionando o sonhar, ciente de que o pesadelo é o avô dos sonhos. Ciente de que um pesadelo recorrente é um sinal de atenção".

Premiado em Cannes há 20 anos cravados com "Cinema, Aspirinas e Urubus", Marcelo Gomes revê esse longa aclamado na narrativa de "Criaturas das Mente", assim como passa em revista seu primeiro curta-metragem, "Maracatu, Maracatus" (1995). O mote desse reencontro com seu passado vem do impasse que viveu durante a pandemia, quando deixou de sonhar.

"O sonho não tem uma precisão, assim como a ideia de real não é precisa no audiovisual. O Sertão que aparece em 'Cinema, Aspirinas e Urubus' parece um sonho, pois ele reflete mais a imaginação dos personagens do que o Sertão geográfico, físico. Da mesma forma, o Recife que retratei em 'Era Uma Vez Eu, Verônica', não é o Recife físico, mas o Recife afetivo da mulher sobre quem eu falo no longa", disse o diretor, citando a produção que representou o Brasil no TIFF - Festival de Toronto, em 2012, e ganhou o Candango de Melhor Filme (empatado com "Eles Voltam") no Festival de Brasília, há 13 anos.

Um dos cineastas mais prolíficos do país hoje, Gomes já apresentou filmes em Veneza, San Sebastián e Roterdã, além de ter vencido o Festival do Rio com "Paloma" (2022). Em trânsito global, ele encontrou seu porto mais seguro na Berlinale. Concorreu ao Urso de Ouro com "Joaquim", em 2017, e passou lá ainda em .doc ("Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar") e ficção ensaística ("O Homem das Multidões", rodada em duo com Cao Guimarães). Este ano, voltou à capital alemã pelo Berlinale Series Market, com os episódios de "Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente", cuja produção é da Morena Filmes (de Mariza Leão). Carol Minêm e ele (ambos diretores da minissérie) estiveram no evento, em fevereiro, ao lado do ator Johnny Massaro, da roteirista Patricia Corso e dos produtores Thiago Pimentel (também autor da ideia original) e Tiago Rezende. Com consultoria da médica e escritora Marcia Rachid, a trama é dividida em cinco capítulos, inspirando-se em casos reais ocorridos durante o boom da Aids no Brasil. Estima-se que a MAX exiba esse exercício de revisão histórica em agosto. Em paralelo, o diretor finaliza o longa "Dolores", idealizado por Chico Teixeira (1958-2019), mas filmado por ele com Maria Clara Escobar, com Carla Ribas no elenco.

"Antes das imagens, existem os personagens. É com eles que eu dialogo para construir as narrativas", diz Gomes, que idealizou "Criaturas da Mente" para ser um .doc COM Sidarta e não SOBRE ele.

Por isso, o cineasta acompanha o pensador em conversas com as ialorixás Mãe Beth de Oxum e Mãe Lu e com o imortal da ABL Ailton Krenak, seguindo-o em rituais, na capoeira e em experimentos dignos de um clássico sci-fi. "Nos detalhes dos sonhos estão as pérolas. Há até um ditado que diz: 'Deus mora nos detalhes'. O cinema, com suas claquetes e suas elipses, é uma linguagem que se assemelha ao sonho, acessando o imaginário e nos conduzindo a lugares diferentes entre seus cortes", diz o diretor, que contou com o fotógrafo Ivo Lopes Araújo em sua investigação.

Entre seus produtores, "Criaturas da Mente" traz a grife VideoFilmes, representada por João Moreira Salles (de "No Intenso Agora") e Maria Carlota Bruno, que integrou o ganhador do Oscar "Ainda Estou Aqui".