Muita controvérsia cercou a passagem de Robert De Niro pelo posto de presidente do júri de Cannes, em 2011, quando "Melancolia", de Lars von Trier, foi preterido em prol de "A Árvore da Vida", de Terrence Malick, na disputa por uma Palma de Ouro muito refutada, mas que não fez o festival francês perder sua reverência ao ator americano de 81 anos. Tanto que, na próxima terça, ele estará lá na Croisette de novo, para receber uma Palma Honorária pelo conjunto de sua carreira, antes da projeção do longa-metragem de abertura do evento: "Partir un Jour", da estreante Amélie Bonnin. O Brasil é o país homenageado e concorre na competição oficial (com "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho) e na Semana da Crítica (com "Samba Infinito", de Leonardo Martinelli), além de participar da seção Un Certain Regard com a coprodução lusa "O Riso e a Faca", de Pedro Pinho.
De Niro teve títulos projetados lá muitas vezes, entre eles "Taxi Driver", laureado com o prêmio máximo da maratona cinéfila da Côte d'Azur em 1976. Uma de suas passagens mais discutidas pelo balneário aconteceu em 1984, na projeção de um dos longas mais tocantes de sua carreira, que ganha novos holofotes, agora, no streaming: o épico "Era Uma Vez Na América" ("Once Upon a Time In América"). O Telecine acaba de incluir essa produção de US$ 30 milhões, encarada como sendo a obra-prima do cineasta romano Sergio Leone (1929-1989), em sua grade online. Há como vê-la via Prime Video, na Amazon.
Na Croisette, quatro décadas atrás, sua projeção foi encerrada com uma ovação de 20 minutos de aplausos.
Ambientado em três épocas distintas - 1918, 1930 e 1968 - de Nova York, o filme é baseado no romance "The Hoods", de Harry Grey (1901-1980). Sua adaptação é embalada na trilha sonora de Ennio Morricone (1928-2020), indicada ao Globo de Ouro, em 1985. Suas composições ainda renderam ao longa o Bafta, o Oscar inglês, ajudando-o a ganhar status de obra-prima, fazendo de Leone uma escola, reconhecida como bússola de invenção por áses da linguagem cinematográfica do presente, como Quentin Tarantino.
Filmado entre o Brooklyn, a Flórida e os estúdios da Cinecittà, em Roma, com algumas cenas rodadas em Montreal, "Era Uma Vez Na América" começou a ser idealizado por Leone após o sucesso mundial de "Era Uma Vez No Oeste" (1968), com Claudia Cardinale, Henry Fonda e Charles Bronson. Chegou aos cinemas num momento de apogeu de seu protagonista, De Niro, que havia conquistado o Oscar em 1981, pelo cult "Touro Indomável". Apesar de todo o carisma dele, a duração GG do filme, pouco usual na década de 1980, assustou as plateias, limitando sua bilheteria a cerca de US$ 5 milhões. Mesmo assim, o prestígio do longa, já à época, era alta, maior do que qualquer outro trabalho de Leone, que era esnobado pelos críticos por sua aposta em faroestes comerciais.
Na releitura de Leone e sua horda de roteiristas (Leonardo Benvenuti, Piero De Bernardi, Enrico Medioli, Franco Arcalli, Franco Ferrini, Stuart Kaminsky e Ernesto Gastaldi) para a prosa de Harry Grey, a vida de judeus dos EUA nos anos 1910, 20, 30 e 60 é cartografada a partir das sequelas de exclusão que os cercam. Em 1968, David "Noodles" Aaronson (De Niro) retorna à Nova York, onde teve uma carreira como gângster, 30 anos atrás. A maioria dos seus amigos já morreu, mas ele sente que seu passado não se resolveu. A partir de uma série de flashbacks, a narrativa acompanha Noodles desde sua infância, como um garoto pobre de Nova York, até sua ascensão como contrabandista, chegando, depois, a virar chefe da Máfia, sempre tendo como principal parceiro - e futuro rival - Max, papel dado a James Woods.
Embora tenha dirigido muito pouco em seus 60 anos de vida, Leone havia desempenhado múltiplas funções na área cinematográfica antes de pilotar um set com sua autoridade de realizador autoral, tendo sido assistente de direção, roteirista, produtor... Marcou época com seu estilo proustiano, de buscar passados perdidos, esbanjando adrenalina nas cenas de ação.
Cannes este ano vai de 13 a 24 de maio, com Juliette Binoche na presidência do júri.