Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Histórias portuguesas, e autorais, com certeza

O longa 'Lusitânia - Nação Valente', de Carlos Conceição, disputou o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno e faz sua estreia em telas brasileiras junto a outras produções portuguesas | Foto: Terratreme

 

Lusitânia à vista: Portugal volta a aportar em nossas telas. Indicado ao Leopardo de Ouro de Locarno, de onde saiu com a láurea do Júri Jovem e o prêmio Europa Cinemas Label, "Nação Valente" traz o cinema português de volta ao circuito exibidor nacional a partir desta quinta-feira, em meio à busca da terrinha para se manter ativo, em fricção, nos maiores festivais do planeta. No dia 15, entra em nossas telas um outro candidato luso ao posto de cult, "Não Sou Nada", de Edgar Pêra. A partir da semana que vem, nossos patrícios se articulam conosco no 78° Festival de Cannes, disputando o Prix Un Certain Regard com "O Riso e a Faca", dirigido pelo lisboeta Pedro Pinho e produzido pela Bubbles Project, de Tatiana Leite (Brasil). A sessão na Croisette será no dia 17 de maio. A expressão que batiza o longa-metragem evoca uma canção composta e interpretada pelo baiano Tom Zé.

Em Lisboa e arredores, o cinema português está nem representado por uma leva de títulos de ficção ("Camarada Cunhal") e documentário ("As Fado Bicha"), com destaque para "O Palácio de Cidadãos", de Rui Pires. Nele, o cineasta registra o trabalho dos deputados no Parlamento, atento aos debates e votações numa reflexão sobre a importância da participação cívica e do poder popular.

Título de maior relevo de Portugal no planisfério cinéfilo de 2024, "Grand Tour", que rendeu a Miguel Gomes a láurea de Melhor Direção em Cannes, acaba de chegar entre nós, só que via streaming (MUBI). Sua trama se passa em Mianmar (outrora Birmânia), país do sudeste asiático. O período histórico em que Miguel finca bandeira é 1918, logo após o fim da I Guerra Mundial, ainda com fantasmas coloniais pela Ásia. Ambienta sua jornada em Rangum (ou Yangon), que, àquela época, era uma cidade sob colonização britânica. Um de seus personagens centrais, o funcionário público Edward (Gonçalo Waddinton), vai parar lá após abandonar sua noiva, Molly (Crista Alfaiate) no dia em que iriam se casar. Tomado pela melancolia, ele foge das bodas num local distante do Velho Mundo, cercado de outros paradigmas culturais. Determinada a casar, Molly segue o rastro do noivo. Mergulha num mundo que não é o seu, de códigos avessos aos seus.

Ranços das colonizações alimentam "Nação Valente", que aproxima o diretor Carlos Conceição do público brasileiro. Trata-se de uma mistura agoniante de relato histórico e alegoria, no qual fantasmas do colonialismo assombram personagens característicos da pátria outrora navegadora. O premiado longa do diretor de "Serpentário" (2019) é um ensaio poético sobre as cicatrizes do expansionismo do Velho Mundo em terras africanas. Um expansionismo violento. Conceição se alimenta da fina fotografia de Vasco Viana para criar uma tapeçaria de pequenas histórias ligadas ao ano de 1974 em Angola. Cada núcleo dramatúrgico é como uma trincheira num combate por soberanias e liberdades.

A alegórica presença de uma tropa de jovens entrincheirados diante de um muro é o ápice da narrativa, que ainda fala de um amor mediado pela brutalidade da dominação imposta pelos europeus a angolanos que lutam por sua voz autônoma.

A caminho dos multiplexes, "Não Sou Nada" traz a assinatura autoral de Edgar Pêra em sua realização. Há uma fotografia estonteante neste thriller psicológico que decorre dentro da cabeça de Fernando Pessoa, e fez sua estreia no Festival de Roterdã. No seu Clube do Nada, habitado por heterônimos, o poeta consegue concretizar todos os seus sonhos. Mas a entrada em cena de uma mulher sofisticada, muito diferente da Ofélia do mundo real, começa a desestabilizar o clube, enquanto o ultrajante heterônimo vanguardista Álvaro de Campos disputa a autoridade de Pessoa de forma violenta. A produção é de Rodrigo Areias, diretor de cults como "Hálito Azul".

Em janeiro, no Festival de Roterdã, os portugueses singraram mares holandeses com "Pai Nosso - Os Últimos Dias De Salazar", de José Filipe Costa. Num exercício de sutileza, o diretor do crocante "Prazer, Camaradas!" (2019) narra o calvário do líder político António de Oliveira Salazar (1889-1970), com Jorge Mota no papel do estadista. Existe sátira no engenho dramatúrgico do roteiro escrito pelo cineasta com Letícia Simões e Daniel Tavares, numa reconstituição dos delírios salazaristas na reta final de sua vida, já distante do Poder.

Em fevereiro, durante a Berlinale, a pátria de Camões agarrou-se aos holofotes com "Duas Vezes João Liberada", de Paula Tomás Marques. A partir das vivências de um corpo avesso ao binarismo histórico, inconformado com o dito "determinismo biológico", este experimento poético festeja o desejo de pessoas que almejam ser as profetas de suas próprias histórias, embora a Inquisição cruze seu caminho.