Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

De novo em Cannes, agora no júri

Payal Kapadia: 'A Índia que se tornou mais folclórica no cinema, a de Bollywood, é marcada pela música. Em geral, Mumbai nunca é silenciosa e seus sons nos afeta' | Foto: JSquared Photography

Ao anunciar o time de artistas que vai acompanhar a presidente de seu júri oficial de 2025, a atriz Juliette Binoche, nas deliberações sobre a Palma de Ouro deste ano, o Festival de Cannes convocou como sua jurada a cineasta indiana que fez o planisfério cinéfilo (em peso) debater sororidade em sua edição passado: Payal Kapadia. Em maio de 2024, ela deixou a Croisette (a avenida principal do balneário francês onde o evento se passa) com o Grande Prêmio do Júri.

Conquistou essa láurea e um oceano de elogios por "Tudo O Que Imaginamos Como Luz" ("All We Imagine As Light"). Indicada ao Globo de Ouro de Melhor Filme de Língua Não Inglesa, essa joia ganha um novo espaço no Brasil agora que a diretora de 39 anos se ocupa de avaliar quem disputa as láureas da maior maratona cinematográfica do planeta, incluindo o pernambucano Kleber Mendonça Filho, que exibirá "O Agente Seccreto" (com Wagner Moura) em concurso. A produção que consagrou Payal estreia por aqui na TV (a cabo) no próximo dia 16, às 16h05, no Telecine Cult. Antes pode ser visto no streaming da emissora ou na Prime Video da Amazon.

Além de Binoche, Payal terá como colegas de júri: a oscarizada estrela americana Halle Berry; a atriz italiana Alba Rohrwacher; a roteirista franco-marroquina Leïla Slimani; o documentarista e produtor congolês Dieudo Hamadi; o multiartista sul-coreano Hong Sangsoo, hoje definido como o realizador mais prolífico da atualidade; o cineasta e produtor mexicano Carlos Reygadas; e o bombado ator da série "Succession", Jeremy Strong, dos EUA. O trabalho deles vai de 13 a 24 de maio. Tudo começa após a sessão de "Partir un Jour", da estreante Amélie Bonnin, que abre a programação cannoise.

O time de Binoche esbanja diversidade e impõe prestígio em múltiplas vias. No caso da diretora egressa da Índia, ela fez o cinema de sua pátria ser visto e admirado para além dos lugares comuns dos musicais egressos de Bollywood, trazendo novas miradas sobre o empoderamento feminino.

"Quero acreditar que teremos mais mulheres realizando funções técnicas importantes no cinema daqui para frente, pois já existe uma mudança acontecendo", desabafou a cineasta, na França, ao ser laureada por "Tudo O Que Imaginamos Como Luz". "Trabalhei cinco anos nesse roteiro que fala de três vozes femininas, de gerações diferentes, e ele ia mudando conforme eu amadurecia", disse Payal ao Correio da Manhã na Croisette.

Falado em três línguas (o malaiala, o hindi e o marata), o drama rodado por ela enche o peito das plateias de esperança sem incorrer nas caricaturas de feel good movie. Foi o primeiro longa-metragem de CEP indiano a concorrer à Palma de Ouro depois de um hiato de 30 anos. Nascida na região de Rourkela, há 67 anos, Mira Nair, colega e compatriota de Payal, agraciada com o Leão de Ouro de Veneza por "Um Casamento à Indiana", 24 anos atrás, foi a realizadora daquela nação que chegou mais longe em reconhecimento internacional, driblando sexismos históricos. Payal, que conquistou 47 troféus de prestígio com sua saga sobre companheirismo, pode ir além de Mira.

Realizadora dos curtas-metragens "Afternoon Clouds" (2017) e "And What Is the Summer Saying" (2018), Payal criou conscientemente caminhos que a diferem do audiovisual de sua terra natal, cujo maior artesão autoral foi Satyajit Ray (1921-1992), ganhador do Urso de Ouro de Berlim (com "Trovão Distante") e do Leão dourado veneziano (com "O Invencível").

"Queria paletas distintas do que se faz no meu país, sobretudo Bollywood (seara mainstream do audiovisual da Índia, especializada em melodramas e musicais), com a consciência de que cada província indiana tem o seu próprio polo cinematográfico, com regras próprias e, por vezes, com línguas diferentes", respondeu Payal ao Correio em Cannes, ao citar a francesa Claire Denis (diretora de "Com Amor e Fúria" e "Bom Trabalho") entre suas referências. "Na fase do ano relativa às monções, nas chuvas, quando se olha o horizonte, tudo adquire um tom azul, por vezes cinza. Eu quis essa paleta, que depois se abre para o vermelho, num sinal da iluminação que se dá com as personagens. O título do filme sugere a sensação de sombria que nos cerca quando a vida parece sem saída".

Ganhadora do troféu L'Oeil d'Or (a Palma de Documentários de Cannes) por "Uma Noite sem Saber Nada" (2021), Payal idealizou "Tudo Que Imaginamos Como Luz" como se fosse uma operação sinestésica. Na trama, a enfermeira Prabha (Kani Kusruti) recebe um presente inusitado do ex-marido. Nesta mesma época, a colega de quarto dela, Anu (Divya Prabha) começa a namorar e tenta encontrar um lugar onde o novo casal possa ter intimidade em paz. Nesse momento, uma viagem para o litoral vem bem a calhar à rotina delas, que se abre para uma terceira figura, a aposentada Parvaty (Chhaya Kadam).

"A Índia que se tornou mais folclórica no cinema, a de Bollywood, é marcada pela música. Em geral, Mumbai nunca é silenciosa e seus sons nos afeta. Outra operação em que tentei buscar um caminho diferente foi no som, buscando a quietude. Na Índia, nem o silêncio é quieto", disse a diretora. "Espero que com o interesse do mundo pelo filme, a partir de Cannes, as barreiras da língua se quebrem para nosso cinema".