Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

LF Carvalho em dose dupla

Depois de uma travessia por novelas como 'A Indomada', Selton Mello ganhou status de titã nas telonas com 'Lavoura Arcaica' | Foto: Divulgação

Inaugurado na terça à luz de "Vitória", com Fernanda Montenegro, o 27º Festival du Cinéma Brésilien de Paris reservou seu domingo para celebrar a obra cinematográfica do diretor de TV mais inventivo do país: Luiz Fernando Carvalho. Foi uma adaptação de "Homens Querem Paz", de Péricles Leal, feita em planos-sequência para a "Terça Nobre", que transformou esse artesão da imagem num farol de invenção no espaço mais industrial de nosso audiovisual: a TV Globo.

Esse programa passou em 1991 e edificou seu legado. Ele permaneceu por lá anos, presenteando a emissora com pérolas como "Rei do Gado" (1996), "Os Maias" (2001), "Hoje É Dia De Maria" (2005), "A Pedra do Reino" (2007), o antológico "Capitu" (2008), "Afinal, O Que Querem As Mulheres" (2010); "Meu Pedacinho De Chão" (2014), "Velho Chico" (2016) e "Dois Irmãos" (2017).

Na TV Cultura, ele emplacou a minissérie "Independências", em 2022, com Daniel de Oliveira de Dom Pedro I. No meio do caminho, fez um filme... e que filme!... por muitos considerado "A" obra-prima do cinema nacional do século XXI: "Lavoura Arcaica", baseado na obra-prima literária de Raduan Nassar. Diz sempre que aquele livro o encontrou.

Um encontro de alma também se deu com "A Paixão Segundo GH", escrito em 1964 por Clarice Lispector (1920-1977), que marcou o regresso de Luiz Fernando às telonas, na Semana Santa de 2024. Ambos os longas passam neste domingo na capital francesa, no cine L'Arlequin.

"Vistos juntos, Lavoura e GH, talvez traduzam a relação sagrada que enxergo entre imagem e palavra. Sinceramente não acredito em uma hierarquia entre estes dois vetores da linguagem cinematográfica", explica Luiz Fernando ao Correio da Manhã. "A palavra está em tudo, mesmo no silêncio. E por isso exerce sobre o meu cinema a força de um logos, a presença de um pensamento que ecoa uma perspectiva vinda de muito longe, mais longe ainda do ponto de onde surgem as imagens em minha memória, e que, por ser palavra, relaciona-se diretamente com o outro e com a sociedade. A palavra é a ressurreição de algo que não começa em mim, mas que inevitavelmente passa por mim da mesma maneira que por todos nós. É ela o elemento espiritual mais comum de nossa condição humana".

Com 52 prêmios no currículo, "Lavoura Arcaica" estreou há 24 anos. Depois de um longo período restrita a grade de cinematecas, essa joia caiu na streaminguesfera: tá no Globoplay. A exibição na França, na manhã deste domingo (4), amplia seu prestígio. Seu enredo nasceu como literatura em 1975, num livro homônimo de Raduan Nassar, e virou cinema pelas mãos de Luiz Fernando, em filmagens iniciadas no fim dos anos 1990.

Em universidades, no âmbito acadêmico, a linguagem de Nassar foi saudada como sendo "uma revelação, dessas que marcam a história da nossa prosa narrativa", segundo o crítico Alfredo Bosi (1936-2021). Passou pelos festivais de Biarritz, Havana, Montreal e Roterdã. Por aqui, conquistou seis Candangos no Festival de Brasília, incluindo o de Melhor Filme, num empate com o hoje esquecido "Samba Riachão".

Espécie de estudo semiológico sobre a instituição família e sobre a ancestralidade, "Lavoura Arcaica" provoca um misto de euforia e desalento, quase como em um paradoxo. A euforia se dá pelo fato de o choque estético causado pelo discurso de Raduan em Luiz Fernando ter conduzido o cineasta a filmar da maneira mais pessoal possível, sem fronteiras mercadológicas e sem compromissos teóricos. A razão do desalento: a incômoda impressão de o longa parecer um caso isolado de invenção em nosso cinema, de uma potência jamais igualada. Seu roteiro segue os passos do jovem André (Selton Mello, colossal em cena) que quer ser profeta de sua própria história. "Lavoura Arcaica" traduz em jorro imagético a importância da ancestralidade no caminho de cada um, tendo um soberbo Raul Cortez no papel de um pai controlador.

Macaque in the trees
'A Paixão Segundo GH', com Maria Fernanda Cândido, marcou o regresso de Luiz Fernando às telonasno há exatamente um ano | Foto: Divulgação

Agendado para às 21h15 (horário francês) no l'Arlequin, no domingo, "A Paixão Segundo GH" ganhou os prêmios de Melhor Filme e Melhor Interpretação no Festival Internacional de Buenos Aires, o Bafici, em 2024. Clarice Lispector (1920-1977) é seu chão, sua autora, seu Norte. Maria Fernanda Cândido tem a atuação de uma vida vivendo uma mulher que é muitas, tantas, todas, atomizada, implodida e reconfigurada após se deter diante da imagem de uma barata esmagada.

Pavimentado sobre uma homenagem à atriz Dira Paes, o 27° Festival du Cinéma Brésilien de Paris segue até o dia 6, quando encerra sua programação exibindo "Homem Com H", de Esmir Filho, sobre Ney Matogrosso.