Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Lírio Ferreira: 'Alguns filmes me tatuaram e me impregnaramde ideias'

Lírio Ferreira, cineasta | Foto: Mariana Canhisares/Divulgação

Rastreando resquícios de Ferreira Gullar (1930-2016) em terras distantes (como Moscou) para o projeto "Rabo de Foguete", sobre o êxodo do poeta maranhense em pátria estrangeira, Lírio Ferreira regressa aos cinemas com uma ficção. Volta com um quase faroeste, que para uma leva polpuda da crítica - e de seu fã-clube - é seu melhor filme nos últimos 20 anos. "Serra das Almas" tem um quê do "Onde Os Fracos Não Têm Vez" que encheu os Irmãos Coen de Oscars em 2008. Como no cult americano dos manos Joel e Ethan, há uma fortuna roubada (no caso, em joias); há gente disposta a matar para se apoderar desses valores; há um bicho solto tão perigoso quanto o Anton Chigurh de Javier Bardem. O Correio da Manhã só não pode te dizer quem é, para não dar spoiler. Podemos assegurar, contudo, que tem um elenco em estado de graça em cena, sobretudo Ravel Andrade, no papel de Gislano.

Na trama, é ele quem junta um bando de amigos desajustados para roubar pedras preciosas, num golpe que descamba para uma comédia de erros com direito até a uma vaca. Existe um político corrupto até o osso (papel que Bruno Garcia devora com uma fome de anteontem e com um brilho de "para sempre") que é atingido nesse rolê criminoso.

Na "Serra das Almas" de Lírio, ressecada na fotografia dionisíaca de Pedro von Krüger, um senso muito peculiar de "dignidade" se faz notar numa repórter idealista que persegue um escândalo (papel de Julia Stockler). Nota-se ética (ou quase) no motoboy de passado nebuloso vivido por Vertin Moura em interpretação meticulosa)e na cantora cansada de desilusões muito bem construída pela atriz Mari Oliveira. Desse bonde de tipos, o realizador do seminal "Baile Perfumado" (1996), rodado em duo com Paulo Caldas, cria um microcosmos do Brasil.

Na entrevista a seguir, a produção, escrita por Paulo Fontenelle, Audemir Leuzinger e Maria Clara Escobar e laureada com o Prêmio Netflix na Mostra de São Paulo, é dissecada por Lírio.

De onde vem, conscientemente, o perfume de western que suas ficções, como "Árido Movie" e, agora, "Serra das Almas", têm, ainda que dialogando com matrizes mais contemporâneas ou modernas do gênero?

Lírio Ferreira: Acho que vem da minha cinefilia. Eu acho que vem dos filmes que marcaram os cineclubes ao longo da minha vida de cinéfilo. Acho que alguns filmes me marcaram. De certa maneira, alguns filmes me tatuaram e me impregnaram de ideias. Eu acho que o "Árido...", o "Acqua Movie", e sobretudo, o "Serra das Almas", são multigêneros. "Serra" brinca seriamente com as fronteiras dos gêneros do cinema. É um filme de aventura, é filme de ação, é filme de terror, é thriller e é um faroeste. Se existem essas referências ou se as pessoas, assistindo ao filme, encontram-se nessas referências, eu já fico bem satisfeito.

De que forma um filme como "Serra das Almas" te dá a chance de discutir honestidade e crime num país tão assolado pela corrupção quanto o Brasil?

Esse signo dos (personagens) desajustados, que "Serra" tem, é uma coisa bem pertinente ao faroeste americano. Jorge Furtado (diretor de "Ilha das Flores") falava que, na época das locadoras de vídeo, tinha gênero de filme de tudo quanto era tipo, mas tinha uma estante particular que era chamada "cinema brasileiro". Parecia que o cinema brasileiro era um gênero só. Era como se fosse vetado, aos cineastas brasileiros, o direito de mexer com gêneros. Tanto que nós temos poucas incursões em certos filões. Acho que o "Serra das Almas" muda isso, pois o cenário atual do país possibilita essa mudança. Esse filme foi feito numa transição de governo (da Era Bolsonaro para a Era Lula), na volta de uma certa esperança. Na época em que a gente filmou, se os resultados das eleições fossem outros, o filme teria, provavelmente, um outro final, talvez, não tão esperançoso. Esse filme consegue espelhar espelha o desajuste moral e ético que existe no país.

Em 2024, depois de exibir "Serra das Almas" na Première Brasil e na Mostra de São Paulo, você correu telas do festival IDFA, em Amsterdã, com "O Menino d'Olho d'Água", um belo documentário feito em dupla com Carolina Sá, sobre o músico Hermeto Paschoal. Projetou ainda "A Última Banda de Rock", .doc com foco no conjunto Cachorro Grande. Que rotas o documentário aponta para a sua trajetória autoral?

Eu acho muito bacana essa coisa de fazer ficção e documentário ao mesmo tempo e não necessariamente separar uma coisa da outra, porque o grande barato hoje é você passar dessas fronteiras. Sempre quis encarar desafios bem diferentes. No documentário, o grande barato é você sair de um lugar, entrar por vários desvios e tomar vários atalhos, sem saber exatamente aonde vai chegar.

Já grudou no "Rabo de Foguete"? O que esperar do teu Ferreira Gullar?

O que de mais importante há para se esperar de um filme é esperar que ele fique pronto. Espera é uma coisa muito maravilhosa. Estou aprendendo a fazer um filme político, mas poético também. Acho que é isso: poesia política.